22 de julho de 2005

Ayako (3 vols.). Osamu Tezuka (Delcourt)


Por instância de um leitor e confrade bd-bloguista destes (nem sempre) pequenos textos, a minha leitura de Tezuka desviou-se para um outro título disponível em francês, Ayako.
Esta é a saga de uma família que acompanha as desditas – poucas felicidades atravessam a vida de todos os seus membros – que advêm a todos os personagens, desde o filho que retorna como prisioneiro da II Guerra Mundial, ao seu velho pai, proprietário rural ainda de laivos feudais, até à sua mais nova irmã, que acabará por ser o inocente bode expiatório de todos os pecados, culpa e bílis dos restantes familiares. E como todo o bode expiatório, acaba por se manchar a si mesma com esse pecado. Enclausurada numa cave onde terá que habitar separada do resto do mundo, sem que tenha sido como uma escolha consciente à Diógenes, toda a sua aprendizagem passará ao largo do cinismo e hipocrisia humanas, e acaba por sofrer duplamente: primeiro, por não os experimentar, secundariamente, por não ter defesas contras os mesmos sentimentos.
Ayako não é propriamente a testemunha de todos os eventos mostrados na narrativa, por isso não se trata sequer de um “olhar o Japão através dos olhos de Ayako”. Este é um retrato de um Japão dolorosamente saindo da derrota, da derrocada dos seus valores supostamente eternos, dos seus princípios estreitos de viver como acima do resto do mundo, para uma crueldade que se fez sentir na carne dos seus filhos. A acção começa em 1949 e terminará – através de vários saltos desiguais mas necessários – em 1972.
Publicado serialmente entre 1972 e 73, Ayako parece ser uma dessas obras do crescente interesse de Tezuka por temas mais adultos, a par e passo com Phoenix e Buddha, mais ou menos contemporâneos. Poder-se-á dizer que esta é uma ficção historiográfica, que tanto foca acontecimentos reais como ficcionais, como outros que parecem seguir à letra o preceito famoso de Eça de Queiroz, “Sob a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”: mudam-se nomes de pessoas, de companhias, mas as pistas das suas relações com o real são apresentadas abertamente. O facto mais premente dessa apropriação foi a morte do presidente da companhia dos caminhos-de-ferro, o Sr. Shimoyama, em 1949, cujas circunstâncias jamais seriam resolvidas.
No entanto, esta não é uma obra que me tenha satisfeito como as anteriores citadas, mesmo tendo em conta que a sua satisfação não está relacionada com o seu género (pois Unico é infantil, e Atom juvenil, mas justos nos seus territórios respectivos). Por um lado, sinto alguma desproporção nas várias intervenções de um narrador extradiegético, que avança mesmo explicações ou notas relativas à realidade externa ao enredo, e o restante ritmo da obra, apresentado sob a forma de pequenos capítulos, nem sempre correspondentes a uma mesma divisão cronológica. O contraste é maior mesmo na forma como surge – uma mancha numa letragem mecânica em vinhetas esparsas – ou se cotejadas ao único momento em que Jiro Tengé ocupa essa função, na primeira refeição em família (vol. 1, pgs. 28-29).
Mesmo em comparação com Barbara, também editada na mesma colecção, os desenhos, os cenários, a mise-en-page de Ayako parece-me ser mais fruto de trabalho de estúdio que de verve criativa. Em primeiro lugar, os desenhos que parecem ser ilustrações de notícias ou desenhos industriais, sempre que se citam acontecimentos não centrais ao enredo (p. ex., a segunda vinheta da pg. 72, vol. 1, ou a cena de batalha entre os yakuza na pg. 137, vol. 3); mesmo no tratamento dramático pretendido com o rosto de Jiro na pg. 121, vol. 1, surge menos como um contraste operativo do que uma infeliz mistura de estilos. Muitos dos cenários, inclusive paisagens, edifícios ou viaturas, parecem ser decalques de um qualquer catálogo de figuras pré-fabricadas e prontas a usar. Não digo que Tezuka jamais tenha recorrido às mesmas técnicas e ajudas noutras obras, mas há neste título uma mais débil dissimulação ou integração.
Não que não surjam planos e estratégias formais relativamente surpreendentes. Não nos esqueçamos que Tezuka, não obstante trabalhar para um grande público, não abdicava de experimentar novas técnicas no que diz respeito à mangá. Vejam-se, por exemplo, a primeira vinheta da pg. 82 do primeiro volume, em que vemos as duas linhas (paralelas) do comboio e os círculos formados pela chuva num plongée a partir de um ápice em relação ao solo, mas os traços da mesma chuva e Jiro numa perspectiva diferente, formando assim uma composição inusitada (e que se repetirá aqui e ali). Ou a literalmente cena teatral em que apenas as personagens mudam e se confrontam, entram e saem, num cenário imóvel, entre as páginas 113 e 124 do vol. 3 (estratégia que não será minimamente reutilizada e por isso destoa com as restantes estratégias).
As personagens são, no entanto, bem construídas, obedecendo cada uma à sua própria moralidade estabelecida, que se desgasta pela convivência nefasta de uns com os outros. Também é interessante notar o progressivo envelhecimento de cada uma das personagens, numa espécie de gesto virtuoso do autor. Apesar dos sucessivos crimes e hediondas transgressões retratadas, que parecem não ter somente fim como apenas uma possível escalada, o livro termina com a moral restabelecida e a nota de que a invisibilidade de Ayako só poderá significar felicidade para a mesma. A edição francesa possui ainda uma espécie de notas epilogais que não são desprovidas de interesse (vols. 1 e 3). Posted by Picasa

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