26 de novembro de 2006

Laura & Patrick/Le Journal de la Jungle. Mathieu Sapin (Onomatòpée/L'Association)


Nos últimos tempos, no grande mercado franco-belga, a presença cada vez maior de variadíssimas editoras, não obstante as críticas (umas mais pertinentes que outras) de Menu, e das mais variadas propensões, têm levado a uma profusão jamais verificada anteriormente na criação de banda desenhada. É óbvio que apenas o tempo e a criação de uma visão panorâmica, crítica e balizada fará “separar o trigo do joio” e permitir-nos entender as consequências dessa profusão. No entanto, não faço parte dos advogados que odeiam a “cultura de massas”. Esta existe enquanto condição de produção, e pode dar luz a boas obras de arte (de massas). Há bandas desenhadas que não fazem parte dessa cultura (apenas a título de exemplo, publicações como a Kramer’s Ergot). Outras sim, e bem. Como aquelas que têm surgido, no contexto indicado, de Matthieu Sapin (o qual começou a trabalhar há cerca de seis anos, e t~em já um número invejável de álbuns "à francesa").
Muitos dos seus álbuns estão nas mãos ora de grandes editoras ora de subsidiárias ora de “pequenas grandes” editoras (Delcourt, Lito, Les Requins Marteux). Aparentemente, dirigem-se quase todas a um público vasto, jovem, se não mesmo infantil, quer pelas regras nas quais se inscreve a sua arte quer pela tipologia de personagens e de enredos. Sapin faz mesmo parte de uma “nova escola francesa”, que se expressa através de um desenvolto mas muito solto desenho, cores vivas (quando as há), e que constrói aventuras muito bem dispostas, divertidas, cheias de eventos em catadupa, que parecem apontar para um público mais jovem, mas sem deixar de incluir cenas mais arrojadas, quer em termos de violência quer em termos sexuais, sem cair no explícito obviamente, e com muitas piadas de “cocó-xixi” (e acreditemos que existirá algum “estudo de mercado” por detrás dessas estratégias narrativas). É como se Sapin (e outros) não evitassem a realidade e o acesso a ela a todos os leitores, por mais jovens e por mais “protegidos” que sejam.
De facto, tal como Rudolphe Töpffer em M. Pencil ou Rude Goldberg com a suas “invenções”, a maioria dos álbuns de Sapin são de um humor que, há falta de melhor, chamaria de “materialista” e “casuístico”. O que quero dizer com isso é que há uma espécie de humor (Töpffer fazia pouco do Materialismo com ele) em que se apresenta uma contínua cadeia de acções e reacções, e que leva a uma aparentemente interligada sucessão de eventos. Mas no fundo, essa direcção é apenas de situações espatafúrdias e a sua teleologia é apenas a do ridículo. Nos livros de Sapin mergulhamos normalmente de imediato na acção central, sem qualquer necessidade de uma ambientação pausada. “Já começou”, dizemos na primeiríssima página, na primeira vinheta... E mesmo onde se apresentam episódios separados, como unidades menores (como no caso de La fille du savant fou, Salade de Fluits ou o mais recente Laura & Patrick, Les Jeunes de la Jungle, em colaboração com o escritor Riad Sattouf), o livro apresenta-se como um todo unificado (o autor revela-me que essa fragmentação se prende com um certo grau de nostalgia pela publicação de bandas desenhadas em revistas periódicas, e tenta mimar de facto esse ritmo inexistente hoje em dia no mercado pela sua inclusão nos álbuns). O mesmo que se verifica em obras de Clowes ou Seth, por exemplo. Mais, tal como Supermurgeman, as inúmeras origens diversificadas das referências (que pautam as personagens, os locais, os acontecimentos) não levam a uma dispersão temática, mas antes à multiplicação do fim último das suas obras: o tal humor preso às acções físicas (Keaton é o maior vulto do género no cinema).
Outra opção narrativa que se verifica em quase todos os seus títulos é o de manter uma série de personagens comuns que se cruzam e que podem assumir um protagonismo aqui e passam a figurantes ali, criando assim um universo ficcional transtextual (Saramago, na Literatura, é conhecido por utilizar a mesma estratégia). Por exemplo, em Laura & Patrick, retoma-se a presença do Professor T.(annenbaum), que surgia em álbuns anteriores. E, apesar de dar ora atenção às invenções do cientista louco ora ao peixe Pinou (v. imagem a cores), o álbum centra-se sobretudo no relacionamento amoroso crescente entre os dois adolescentes que dão título à série. O facto dos livros se multiplicarem por várias editoras e por vários públicos-alvo apenas torna esta multiplicidade ainda mais interessante.
Le Journal de la Jungle (2º vol.), estando no seio de um programa editorial completamente diferente, já se pauta por parâmetros ligeiramente menos imediatos: há uma menor preocupação em fechar as narrativas, apontando à necessidade de seguir a continuidade da série, um encaixe hierárquico das histórias contidas e que faz emergir uma auto-referencialidade (ao próprio autor, enquanto personagem, ao próprio livro que temos nas mãos, que se desdobra em “personagem participante”, etc.) que não é comum nos restantes livros. Para além disso, o desenho é como que menos domado, mais próximo da caligrafia (na esteira dos “grandes” de L’Association, como Sfar; v. imagem a preto e branco - aliás, o "apadrinhamento" deste último artista é multímodo, pois Sapin utiliza para a sua própria personalidade e criatividade pessoais muitas das estratégias quer formais quer narrativas iniciadas pelo seu colega-mentor; mais, é Sapin quem tomou as rédeas do desenho da Sardine de l'espace, escrito por E. Guibert).
Existem, pelo menos referenciadas neste blog, muitas obras de banda desenhada que se elevam a uma dinâmica gráfica sem precedentes, outras cuja força moral, estética, humana, alarga o nosso entendimento, senão percepção, do mundo. Outras obras, ainda que se inscrevam num grupo mais leve, de “divertimento”, não deixam porém de cumprir bem as regras dessa mesma leveza. Como muitos outros autores já aqui indicados, Sapin cria livros que criam uma vontade, não sem alguma nostalgia, de voltar atrás mas tendo acesso a estas “aventuras” bizarras. Posted by Picasa

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