20 de novembro de 2006

One Thousand and One Nights. Han, Seung-Hee e Jeon, Jin-Seok (Ice Kunion)


Este título é um curioso jogo de encontro entre duas tradições narrativas ditas “orientais”. Uma bem mais antiga que a outra: a dos próprios contos de várias proveniências e que se cristalizaria na obra literária conhecida hoje como “As Mil e Uma Noites” (cuja história é já em si um constante evoluir e transformação de culturas dialogantes) e aquela que está relacionada com um determinado género de produção de banda desenhada, a que se dá o nome generalizado de shoju manga (isto é, visando particularmente o público feminino). O facto de beber da mangá (banda desenhada japonesa) para remeter a um livro da manhwá (bd coreana) não será, espero, de modo algum surpreendente, já que é essa primeira tradição, cujos níveis de produção e presença nos países da Ásia é não só fortíssima e fundamental como esmagadora, a que pauta a produção das bandas desenhadas locais – quer em termos formais quer em termos de estratégias comerciais, etc. – desde a Coreia à China (se bem que aqui exista uma grande resistência por parte de tradições muito próprias) até à Tailândia (e cada vez mais nos países ocidentais). Se bem que merecerá indicar que a tradição específica do sunjeong (literalmente “amor puro”, indicando bandas desenhadas feitas por mulheres, com personagens femininas e para um público de mulheres) tenha começado na Coreia pelos finais dos anos cinquenta, ou seja, algum tempo antes daquele que virá a ser considerado como o título fundador do género “feminino” na banda desenhada japonesa: A Rosa de Versalhes, de Tezuka. Um aspecto político-social importante da evolução deste género é o facto de, aos poucos, responder aos “desejos particulares das jovens mulheres do Extremo Oriente” (diz Lee Nam-ryeong num artigo sobre o género na Coreia do Sul), cada vez mais empregando menos os estereótipos criados pelos homens para representar as mulheres e as suas ambições e sonhos, dando voz assim às próprias mulheres e às mudanças que se têm operado nessas sociedades (de uma forma mais ou menos radical, mais ou menos rápida, em comparação com a lenta progressão – não totalmente atingida, penso – nas nossas).
Um reparo: uma diferença cultural que devemos ter em conta entre o Ocidente e o Extremo Oriente, neste como noutros campos das artes (não obstante o seu aspecto de rude generalidade), é que ao passo de nós nutrirmos um maior apreço pela “originalidade”, pelo carácter único a que um artista aspira e consegue alcançar, desde o advento do Modernismo na nossa cultura, os países asiáticos colocam um maior peso num sentimento de pertença a uma tradição, à continuidade, a um género no qual se sentem mais acompanhados. Não quer dizer que nos primeiros não se subsumam os trabalhos a uma tradição (é impossível não se suceder) e que nos segundos não se aprecie a instauração de uma diferença (qualquer artista forte fá-lo, quase como que naturalmente): há simplesmente uma relação diferença de importâncias. Daí que exista – pelo menos nominal e superficialmente? – alguma facilidade em identificar os géneros pelos quais se pautam as bandas desenhadas de produção japonesa, coreana, chinesa (e as que estão sobre as suas influências): shoju, yaoi, sunjeong, etc.
A autora Han, Seung-Hee é conhecida na Coreia do Sul graças a outros títulos que foi publicando nestes últimos anos e como é indicado esta é a sua primeira colaboração, com o escritor, também jovem, Jeon, Jin-Seok. Se bem que ela se tenha dedicado sobretudo ao género sunjeong mais central, este One Thousand and One Nights (já com três volumes), este novo trabalho é curioso pelo tipo de “adaptação” a que se presta. É que não é uma mera adaptação de uma das quaisquer versões (mais ou menos respeitada literária ou academicamente) a que temos acesso, mas algo que tenta entrar num campo de maior liberdade criativa, justificando-se precisamente na história que o “livro” tem, de convergência de tradições, acrescentos, etc. Não estamos propriamente perante uma obra que pugne pela coesão, explicação e recriação das 1001 Noites num corpo estético unificado – como acontece, por exemplo, na versão de Toppi, Sharaz-De – mas antes perante uma colecção de várias histórias, reais e literárias, provenientes de vários panoramas culturais (a história de Cleópatra, a de Turandot, etc.), encaixadas num fio narrativo, exactamente o que domina o estilo da famosa obra: cada um dos volumes apresenta uma história autónoma, contada no interior da história maior, que tudo liga. Mas aí há ainda uma outra diferença, e não de somenos importância. É que não há Sherazade, ou melhor, existe uma personagem que cumpre esse papel mas é um jovem homem. Existe também um sultão que sofre de um grande desamor, vertendo-o numa misoginia homicida, mas quando chega ao ponto de exigir a presença no seu palácio, numa fatídica noite, como soe ser, da bela e jovem Dunya, é o seu irmão, um tradutor e intelectual, Sehara, que toma o seu lugar. Começamos a narrativa já na noite de Sehara no quarto com o Sultão, que a beija para a tomar sexualmente, descobrindo o embuste. Depois de ser aprisionado durante uma noite, onde aprendemos por analepse o que se passara com o sultão Shahryar, Sehara dá início às suas narrativas.
Ora aqui entra um dos traços mais curiosos e fascinantes da mangá dirigida às mulheres, e que desarruma por completo (ou assim penso) todos os discursos de papéis sexuais, de imposições hegemónicas do machismo, das libertações feministas, etc. É que a shoju manga vive plenamente neste fascínio pelo amor, ou um contacto mais íntimo (e que pode ganhar contornos eróticos, ou profundamente sexuais) entre dois homens. Se bem que nas nossas mentes venha de imediato a sua associação à homossexualidade, na verdade não é essa sexualidade que se exprime. Aliás, como se vê no início deste livro, com o contacto de Sehara com um velho conhecido chinês, comerciante de livros, a aproximação sexual entre dois homens é malvista; mas tal como se parece incorrer numa interpretação muito livre da permissividade das relações incestuosas nas culturas árabes, também não se entendem de imediato os innuendos homossexuais que se seguem na obra... E independentemente do escritor deste título ser um homem (Jeon, Jin-Seok), e muito mais independentemente das suas inclinações sexuais pessoais, estas relações entre homens não podem ser entendidas como sinal de uma situação que pensamos entender, mas como situações indexadas culturalmente: isto é, é uma representação muito específica deste tipo de banda desenhada cujo teor de verdade se relaciona com uma, estranha para nós, reconfiguração do tipo de paixão a que as mulheres se entregam – aceitem seguir esta generalidade, que se prende somente à especificidade do modo como as emoções, relações humanas, desejos pessoais, são expressos no interior desta arte nestas culturas, e não o entendam como uma crassa redução da minha parte da diversidade humana existente no mundo.
Uma das estratégias formais típicas desta escola de banda desenhada é a representação dos corpos por completo e ao longo de um dos lados da página, o que permite a criação de um ambiente ou retrato emocional das personagens no momento indicado. Outra é a dos rostos das personagens principais viradas um para o outro em cada lado da página (mas não em relação a nós, “espectadores”) mas em dois focos posicionais diferentes (e que podemos ver no exemplo). A co-presença dos sujeitos que olham e dos "objectos" olhados (i.e., que se olham) na mesma vinheta indica a assunção da simultaneidade desse olhar e à construção da ideia de que essa partilha é total. Nada mais apropriado a uma certa visão do amor, que é o fito do género. Mais, constrói-se aqui um olhar pelo qual somos forçados (não temos escolha) a atravessar para entender as emoções retratadas. Não se trata de um falso raccord (problema das comparações entre dois modos de expressão artística diferentes), mas antes de uma especificidade formal deste modo em particular. Mais, ainda em relação às estratégias "típicas" do shoju manga, é o recurso a uma caricaturização vincada interna ao estilo, o chibi, ainda que não é exclusiva do género. Finalmente, relacionado com a representação das personagens – e isto é algo que se confirma quer às personagens que representam “japoneses” e “coreanos” como, no caso presente, “persas” e “árabes” – os corpos parecem ser sempre de jovens, quase adolescentes, núbeis, virginais, andróginos, de enormes olhos, de pele branca e de cabelos lisíssimos (e por vezes louros). Todas estas estratégias visuais não podem ser lidas como “realistas”, isto é, como sendo sinal exacto e analógicos da realidade visível, mas como símbolos – para o que chamei antes de “reconfiguração”, mas seria mais apropriado falar de uma “transfiguração”, ainda que não tão poética como outros exercícios possíveis – para os desejos e projecções da produção e do público feminino do Extremo Oriente [interpretações e leituras conforme um artigo de pesquisa de Deborah Shamoon analisa e confirma o fenómeno, e cujo título remete de imediato à dicotomia possível nesta área de criação: “Secretárias rameiras e flores rebeldes: os prazeres da banda desenhada pornográfica japonesa para mulheres” (“Office Sluts and Rebel Flowers: The Pleasures of Japanese Pornographic Comics for Women”, em Porn Studies¸ed. por Linda Williams)]. Por isso, apesar de a “transformação” da Sherazade num papel masculino neste One Thousand and One Nights não é uma retirada dos poderes de uma voz feminina – leitura informada num círculo fechado da nossa cultura – mas antes uma presença muito forte de um imaginário muito próprio que se tem expressado nesse género do shoju manga, e que com este título se apresenta com um exemplo muito curioso. Posted by Picasa

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