11 de fevereiro de 2007

Un Objet Culturel Non Identifié. Thierry Groensteen (L'An 2)

Groensteen deveria dispensar apresentações, caso o território da banda desenhada o fosse coesamente, em que a ideia de uma aturada e contínua investigação fosse não só respeitada como emulada. No entanto, mesmo entre os cultores ou aspirantes a discursadores em torno da banda desenhada, parece existir um bom número de pessoas a fazer orelhas moucas e tábua rasa de todo um historial (décadas) de uma bibliografia académica existente. Como disse num outro contexto, começar do zero é pura e simplesmente um exercício de preguiça mental e desonestidade intelectual.
Para aqueles que o ignoram, eis então uma brevíssima apresentação de Thierry Groesnteen: crítico faz décadas, desde o Cahiers de la Bande Dessinée, director do Centro Nacional da Banda Desenhada e da Imagem de Angoulême (no livro, Groensteen explica as razões, detestáveis, que levaram à inclusão desta última palavra, que por cá se imitou sem reflexão) e editor da 9ème Art, editor-mor da cada L’An 2, autor de variadíssimos livros fundamentais no estudo da banda desenhada, inclusive o seminal Système de la Bande Dessinée, um dos cultores teórico-práticos da Oubapo, instigador de toda uma série de acções relativas a exposições, catálogos, estudos, e o costumeiro “&tc.et.al.” A razão pela qual pareço estar a ser exaustivo (e não o estou a ser, assegurem-se) sobre as várias funções de Groensteen no mundo da banda desenhada é justificável precisamente por terem sido esses variadíssimos papéis o que o levou a escrever o presente livro. Como disse Domingos Isabelinho, este não se trata propriamente de um ensaio na verdadeira acepção da palavra, muito menos o resultado de um estudo aturado, mas antes o testemunho informadíssimo de alguém que viveu no “olho do furacão”, poderoso, da cena francófona da banda desenhada.
Groensteen dispara em variadíssimas direcções, como se pour prendre date em relação a um rol de assuntos ainda insuficientemente, se de todo, debatidos nesta área. Alguns deles revelam da sociologia, da teoria da recepção, da crítica cultural, da crítica das políticas económico-culturais, outros de questões estéticas: como expor a banda desenhada? Como evitar um “rapto” da potencialidade criativa e imaginativa por géneros que se arrogam de todo-poderosos como a mangá mais comercialóide e a nefasta, virulenta high fantasy? Como evitar as armadilhas do facilitismo mediático e do desejo em se atingir um sucesso imediato versus um verdadeiro e profundo trabalho intelectual? Como, enfim, pensar a banda desenhada? Algumas questões prendem-se com simples testemunhos ou realizações textuais de grandes acontecimentos marcantes: o advento do CNBDI, a discussão das origens e o “combate” entre os Töpfferianos e os Outcaultianos, os avanços e recuos da crítica e da edição alternativa.
Um outro ponto de grande interesse é o momento em que, num capítulo muito interessantemente intitulado “A traição dos editores”, fala da banda desenhada como “uma arte sem memória”, tema que me é particularmente querido, conforme alguns textos nestes espaço já o deram a conhecer. No entanto, o caminho e a chave dessa ideia não é absolutamente coincidente, se bem que se toquem em grandes aspectos.
Groensteen demonstra, enfim, a razão pela qual é verdadeiramente um agente incontornável da cena da banda desenhada francesa (senão francófona, ou mais além, agora que o seu Système foi traduzido para inglês e é capaz de ter alguma repercussão junto à Academia americana). Goste-se ou não do trabalho que desenvolveu é inevitável conhecê-lo e recusar fazê-lo é, repito-o, preguiça intelectual da parte daqueles que querem criar determinados discursos relativos à banda desenhada, ou pelo menos um discurso que se revista de algum grau de credibilidade intelectual. Só tem medo de quem pensa que não pensa, afinal. E é também descoroçoante, de certa forma, pensar sequer em iniciar um cotejo entre Groensteen e os gestos importantes que iniciou e cumpriu com aqueles que muitas instituições portuguesas parecem querer prometer fazer mas os quais estão desde logo votados ao malogro, porque estão, à partida, minados por esse medo. O medo de pensar.

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