25 de março de 2007

La Vallée des Merveilles. Chasseur-Cueilleur. Joann Sfar (Dupuis)

Sfar foi estudante de filosofia, o que faz dele – por mais limitado ou inerte que o tenha sido, e duvido dessa condição pelo trabalho que apresenta – um leitor mínimo de uma série de lições que colocam a existência humana numa perspectiva por vezes difícil, por vezes árdua, por vezes trabalhosa, mas quase sempre iluminadora e reestruturante.
Esses possíveis ensinamentos não foram transformados nem transfigurados pelo autor francês em matéria de citação simples nem em fórmulas pontificais nem sequer em pressupostos de criação. São, pura e simplesmente (o que é impossível, pois o pensamento apenas vive da contaminação “impura” entre si e jamais se aproxima do simples, bem pelo contrário dele se distancia como se de um medo se tratasse), baixos contínuos que vão informando de um modo ou de outro a própria vivência das suas personagens sejam estas Fernand, o Vampiro, Ossour, Ulysses, Pascin, o gato do Rabi, o Mosqueteiro minúsculo, ou que pautem a educação de Gamaliel, de Les Olives Noires ou as de Klezmer.
Sfar também nunca escondeu o grande e profundo programa narrativo geral a que se propunha, e onde as suas experiências pessoais se transformariam em matéria plástica passível de integrar as histórias que desejaria contar. Esta frase não é inócua. Sendo este um dos autores mais profícuos, senão gráfico- e verborreicos, deste momento, existem de um modo extremamente visível duas pulsões em curso: a avidez em cobrir ou recriar o mundo inteiro pelo desenho, justificando a multiplicação de temas, de cenários (a-)históricos e (a-) geográficos, de tipologias de personagens e de géneros narrativos, e os compulsivos cruzamentos, por um lado, e por outro a descomplexada vontade de contar histórias. Walter Benjamin, num texto intitulado O Narrador (também traduzível por O Contador de Histórias, segundo Miguel Tamen), mostrava como as transformações operadas na sociedade, transformações técnicas e sociais, alteravam os modos da literatura, estabelecendo uma dicotomia irreversível entre a narrativa, associada à experiência e à oralidade e ao ócio (tempo para contar, tempo para ouvir), “do âmbito do discurso vivo”, e o romance, estrutura que implicava isolamento da parte do escritor (para escrever) e da parte do leitor (confundindo a sua existência própria com o objecto-livro). “Cada vez menos encontramos pessoas com a capacidade de contar uma história como deve ser”. Se bem que não transformarei esta discussão numa hebetude qualquer contra os escritores, o que além de revelar de imediato a minha ignorância seria uma mistura de boutade e de discurso anódino, apenas desejo entroncar esta ideia de oposição literária à leitura de Sfar como um autor que, pela e na banda desenhada, claramente revela o desejo e o cumprimento de retornar a esse mais imediato contar histórias. Um outro elemento dessa oposição em Benjamin é a que existe entre a “moral da história” da narrativa, aberta a uma tradição (um tempo anterior, portanto) e a uma continuidade (um tempo posterior), e o “sentido da vida” do romance, no qual tem de existir um FIM. Nas bandas desenhadas de Sfar essa abertura está presente no culto das séries – que mesmo que terminem se revelam como sempiternamente abertas – e no facto das personagens se autocruzarem por entre os seus universos diegéticos, abrindo(-se) de um outro modo. Estas afirmações não significam, de modo nenhum, que seja uma posição teórica da minha parte que defenda toda a banda desenhada - como se fosse possível falarmos dela, como de outra arte, como se de um monólito se tratasse – dessa perspectiva; temos de ser sensíveis às especificidades de cada trabalho em questão. Neste caso em particular, isto faz sentido.
A banda desenhada apenas lentamente se libertaria de uma necessidade programática de contar histórias, e as mais das vezes associadas a um movimento de fuga, de aventura, de progresso. A sua crise actual em termos materiais e o peso social que tem herdado ao longo das décadas começou a fazê-la vergar no seu interior (enquanto campus) e a tornar possíveis projectos verdadeiramente pós-modernos, metalinguísticos, auto-teorizadores, que são apenas os primeiros passos para um seu crescimento verdadeiro enquanto modo de expressão artístico e intelectual (logo, filosófico em pleno direito de cidadania, e não apenas enquanto objecto de análise histórico-social). Curiosamente, Sfar pertence a um círculo menos ou mais restrito (desde a Association à banda desenhada independente franco-belga-suíça à produção contemporânea) que a fez crescer exponencialmente, sobretudo no plano narrativo (como já o havia discutido), mas de imediato quis mergulhar num movimento que retornasse a um encanto anterior a essa mesma transformação, a uma banda desenhada que, sem desculpas (queria empregar unapologetically, “sem apologias”), apenas se deseja divertir a si mesma, divertindo os outros, sempre através de histórias.
Recorrendo a outro teorizador da literatura, e cultor da metaliteratura, Italo Calvino, poderíamos com ele encontrar em Sfar aquela que é a primeira das qualidades apontadas nas Seis propostas..., a leveza. É também possível encontrar nas bandas desenhadas deste autor francês aquele “símbolo votivo” de que Calvino fala, “o ágil salto repentino do poeta-filósofo que se eleva sobre o peso do mundo, demonstrando que a sua gravidades contém o segredo da leveza”. Neste primeiro tomo de uma nova série, La Vallée des Merveilles. 1. Chasseur-Cueilleur, Sfar vai, não “mais longe” mas “mais claramente” ao encontro da transfiguração da sua experiência real em experiência fictiva e transmissível. De uma forma não só visivelmente imediata como ainda explícita nas notas finais que acompanham este livro, todas e cada uma das personagens aqui apresentadas são as do círculo mais íntimo de Sfar: ele-mesmo, a mulher, os filhos, os amigos, até mesmo o boneco-companheiro da filha. A transfiguração que opera é a de uma retirada, uma fuga, para uma ilha, literalmente, de regressão da contemporaneidade para uma mais urgente fruição das capacidades e necessidades básicas humanas. O “Vale das Maravilhas” é uma espécie de território edénico onde cabe a morte, o sexo, a obrigatoriedade da alimentação, do sono, da defesa, mas em que nenhuma dessas realidades se reveste do peso associado ao “pecado”, ao “desvirtuamento humano”, à “perda” (tão próprias da cultura judaico-cristã; e é necessário ter em conta o judaísmo de Sfar, marcado e assumido como ponto de partida e material de criação). Uma eutopia, ainda que não completa, apontando-se os perigos que vêm de fora (os “civilizados”, os dragões, as criaturas dos mares). Uma das facetas dessa transfiguração pela fuga prende-se com os nomes das personagens: não Joann Sfar, mas “Pot de Miel”, não os nomes dos seus filhos mas “Esprit des Anciens” e “Tigre”... Estamos em crer que estes são nomes talvez derivados desses mimos e carinhos que pertencem ao círculo da maior intimidade (amorosa, familiar, sexual), ridículos para “os de fora”, plenamente significativos para “os de dentro”. Quando os dois caçadores principais se cruzam com velhos amigos, agora “civilizados”, apercebem-se que estes mudaram para novos nomes (nomes nossos, “Emile” e “Franck”), e logo dizem “mas não querem dizer nada”. De facto, há aqui uma profunda sabedoria da parte de Sfar do que um nome representa, apresenta, e denomina.
Contudo, esse afastamento é mostrado não só enquanto programa geral e intrínseco ao que as personagens experienciam como, no interior da história, no confronto com os “civilizados” (Maias?, e depois os amigos); porém, tal afastamento é atenuado na aceitação da agricultura (e leiam-se atentamente os diálogos do protagonista Pot de Miel sobre a agricultura enquanto processo não-natural, não-biológico, para nos apercebermos de algumas das pontas que associam os discursos das personagens a reais posições éticas perante a ordem no nosso mundo, não ficcional), nas sementes da “moda”, na consciência de que a violência não é sumamente necessária...

Sfar emprega aqui totalmente as suas ferramentas, de um desenho quase esquisso, de uma escritura quase garatujo, complementadas pela liberdade etérea das cores da sua colaboradora. Voltando a Calvino, este explicita que “a leveza é algo que se cria na escrita, com os meios linguísticos que são os do poeta”. Mas também os gráficos, acrescentamos nós em prol desta escrita de banda desenhada. Retornamos ao ensaio de Benjamin, no qual ele cita Valéry, que se refere a uma “antiga coordenação de alma, olhos e mãos” de natureza “artesanal, e encontramo-la onde quer que esteja a arte de narrar”. Essa leveza, esse esquisso, esse etéreo jamais tropeça, no entanto, na ordem do “vago e abandonado ao acaso”. De novo e fechando, retornamos portanto a esse poder (afinal, redimido) da narração.
Há um outro aspecto que gostava de salientar, ainda que muito brevemente, e que pertence somente a este livro de Sfar, e não aos outros (mesmo em Le Chat du Rabbin, em que aparentemente se inscreveria um mesmo ângulo). E de novo, recorramos a Benjamin, no mesmo ensaio, quando se refere ao autor russo Nikolai Leskov: algumas das personagens desse escritor são “poderosas figuras masculinas, telúricas e maternais”. À partida, a convivência desses adjectivos poderá parecer paradoxal, até paroxística – lançando-nos num estertor impossível de suportar. À partida, porque estamos cegos por preconceitos e insensibilidades. “Os homens são brutos, as mulheres sensíveis”. “A paternidade é austera e distante, a maternidade protectora”. E quantos mais etcs. O campo da banda desenhada exaura os mitos da masculinidade pela sua vertente mais feroz e muscular: o herói, o super-herói, o vilão. Sfar/Pot de Miel revela-se como um autor/personagem de uma grande potência emotiva, mergulhando numa obtusa masculinidade (ecos de Conan o Bárbaro e outros quejandos) para melhor mostrar a sua faceta maternal, a faceta maternal dos homens, uma sensibilidade toda e só masculina de que os homens são capazes. No ensaio do filósofo alemão, diz-se que esse é um grau “telúrico” (das entranhas da terra), logo longe de um “ideal ascético”: a mão do pai maternal é essa mão que abraça o filho no sono, que o lança no ar, que ensina a pescar e a caçar, que brinca nos mesmos termos. É uma sensibilidade masculina que foi revelada no cinema, como exemplos, de Um Mundo Perfeito de Clint Eastwood a O Regresso de Andrei Zvyagintsev nas relações entre pai e filho (mas que vai tão ao fundo dos tempos até Abraão e Isaac), mas também em Tens a Cara que Mereces de Miguel Gomes.

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