20 de novembro de 2007

Campo di Babà. Amanda Vähämäki (Canicola)


Importa-me começar por uma qualidade de Campo di Baba à qual poderíamos dar o nome de “leveza” ainda que exerça um peso considerável em toda a obra. Há como que uma impressão, uma sensação provocada nos sentidos, portanto superficial, que logo se imiscui e reverbera no interior do livro, no seu mais íntimo: trata-se da ideia de uma fragilidade, ainda que apenas aparente. Mas é uma impressão que de perseverante e nada anódina se torna uma verdadeira impressão, isto é, deixando uma marca, constituindo-se como a marca da obra. Não deixa de ser uma impressão formal, uma ilusão material, mas que lhe confere uma natureza lábil que é continuada, ecoa ou na obra se funda. Os desenhos são a carvão, e concorrem em cada vinheta os contornos seguros das personagens, as tramas pouco regulares que compõem as sombras, os pêlos e cabelos, as partes escuras das representações, traços mais leves que constituem os cenários e objectos secundários, os balões e textos, linhas de movimento ou de impacto, e ainda, e eis o de mais importante, por ser o mais diferente (ainda que não original, que é uma questão muito diversa), haver a presença das correcções, de vestígios mal-apagados de outros desenhos, primeiros esquissos ou tentativas da representação das personagens e suas acções: e esta mesma qualidade não aumenta nem o nível de ruído (por poder apontar para algo que não deveria passar na “comunicação” ou por apontar a um “erro, que se deveria disfarçar) nem o peso, mas bem pelo contrário, aumenta-lhe a leveza a que me referi ao princípio. Deverá ser óbvio que me informo aqui na qualidade do mesmo nome a que Italo Calvino se referiu nas suas Norton Lectures, em cujo ensaio, referindo-se ao mais famoso romance de Milan Kundera, indica “que na vida tudo o que escolhemos e avaliamos como leve não tarda a revelar o seu peso insustentável”. A que tudo se refere o autor italiano? A que “coisas”? Talvez pudéssemos responder, e aproveitando a leitura do livro de Amanda Vähämäki, que se tratarão de elementos como os sonhos, as esperanças, coisas impalpáveis mas inerentes à vida humana, e passíveis de serem transportados pelos instrumentos dos artistas, palavras, linhas, formas, sons, e que se constituirão em música, pintura, romances, bandas desenhadas. (Mais)



Por um lado, essa leveza expressa-se (ganha forma exterior) de um modo quase cómico, sustentado pela excelente qualidade da impressão das páginas, que leva a um pequeno trompe l’oeil e que poderá levar – levou-me a mim, pelo menos – à sensação de estar perante um caderno onde estão os desenhos originais a carvão, e que deveria ter cuidado ao manusear o objecto e a passar os dedos por sobre os desenhos, incorrendo o risco de borrar esse carvão, de apagar as linhas... Essa sensação (precisamente pela presença de alguns dos efeitos indicados acima) repete-se nas legendas em inglês, escritas pela autora, no pé da prancha (ou melhor, numa secção reservada a essa tradução), o que empurra a autorização dos dedos apenas para os extremos das páginas.

Por outro lado, essa leveza está indissociavelmente presente nas próprias estratégias de representação e de imaginário (criação de imagens). O facto da personagem principal, uma rapariga nova, e mesmo algumas das criaturas fantásticas (o “convidado” absurdamente obeso, as minhocas no frigorífico, o urso, o cão que doa dentes, os papo-secos que se encontram prontos à colheita...) serem desenhadas de um modo que recorre a traços suaves e a uma caracterização simples, e a pequenos episódios caricatos, levará o leitor a pensar estar perante uma inócua história infantil, fantasiosa, bonita. Mas logo uma outra acção, e outra, e todo um ambiente que vai sendo criado e ganhando contornos mais precisos nos tira desse caminho de entendimento, e nos faz chegar a um território mais inóspito, menos previsível, e por isso mesmo (agravado devido às expectativas) mais perturbador. Penso que poderemos dizer o mesmo do caso de outros artistas, como ocorre nalguns dos trabalhos de Charles Burns e de Isabel Carvalho, mas acima de todos penso que as maiores afinidades criativas de Vähämäki se estabelecerão com Renée French. Ambas as autoras parecem empregar convenções representacionais retiradas de um contexto infantil – Richard Scarry parece-me uma influência, ou “fundo”, plausível – para permitir a entrada em universos diegéticos mais obscuros, que penetram num terror subcutâneo e subterrâneo (em termos psicológicos) típico dos sonhos mais habituais dos seres humanos – transformação/relação com animais, acidentes físicos e dor, perdas de partes do corpo, matar alguém ou algo e deixar rastos de sangue como traçado da nossa passagem, a sensação de nos sentirmos perdidos, a impotência perante uma figura maternal ou paternal, as tarefas a que somos obrigados por razões que nos escapam... Tudo isto é uma descrição directa e objectiva dos nódulos de acções da narrativa deste livro.


O mesmo ambiente de descentralização narrativa, mas que parece estar apontando para uma direcção inexorável e perigosa, não obstante as aparências, sucede igualmente noutros trabalhos de Vähämäki, ora numa pequena história incluída na antologia finlandesa Glomp, ora numa outra obra de difícil catalogação, e de que se discorrerá aqui, intitulada Squirels First (sic, já que deveria ser “Squirrels”; ed. Ram Hotel). Na verdade, trata-se de um catálogo de uma exposição, mas a forma como é apresentado – uma caixa quadrada no interior da qual se encontram onze folhas dobradas com desenhos nos quais surgem personagens e acções que vamos associar, sem esforço, a uma estória, por mais diáfana que esta seja – leva-nos a encará-lo como tendo propósitos narrativos, ou pelo menos interpretáveis como tal, tal qual sucede com obras ainda mais problemáticas, como as Vistas de Fuji (todas as versões) de Hokusai. Aí também a personagem principal é muito jovem, demasiado jovem, e a sua colocação num contexto de angústia perante a morte, a perda de um amor e do confronto com a estranheza (é dessa forma que leio as relações com as outras personagens que surgem, inclusive o esquilo morto que dá o mote), é o imo dessa estranheza suscitada.

Num tempo em que, em termos visuais, se faz apelo da parte da fama a cada vez maiores graus de pirotecnia, de espalhafato e espectacularidade, mas cada vez mais vazios sentidos profundos da existência humana, é a aparente falta de propriedade (em todas as acepções) formal de Vähämäki (e outros artistas, como Marco Mendes) que demonstra que é na presença de uma genuína despreocupação em relação aos “acabamentos” que se pode chegar a uma sensibilidade mais acabada, isto é, mais substancial para com o mundo. Isto nada tem a ver com um vago, ou uma nebulosa de ideias, nem de exercícios de retórica (ou de estilismo visual) que não levam a um sentido último; bem pelo contrário, trata-se de uma exacta, precisa, senão minuciosa, construção dessas particularidades de “erros”, de “inacabamentos” de “tentativas goradas” para melhor garantir a especificação da incompletude da vida humana. Para repetirmos o que se deve a Calvino, trata-se da “procura da leveza como reacção ao peso de viver”.
Nota: agradecimentos a Marcos Farrajota, pela oferta do catálogo Squirels First e por ter servido, e ainda servindo, como ponte entre os leitores atentos e muitas publicações de maior tino.

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