30 de janeiro de 2008

Maggots, Brian Chippendale (PictureBox, Inc.)

O que se diz no livro.
Maggots é o fac-símile de um livro que Brian Chippendale terminou – mas jamais publicou – em 1996 e 97 enquanto vivia em Fort Thunder (...)”. Aprendemos assim que, não obstante as suas datas de publicação, este pequeno livro de cerca de 350 páginas é em termos de cronologia e produção, anterior ao gigantesco volume Ninja. O seu aspecto é estranhíssimo, dado o facto que foi “desenhado freneticamente sobre as páginas de um catálogo de livros japonês”.
O que diz o livro.
Tornar real a mera leitura deste livro é um esforço. Trata-se não apenas de um exercício, um cumprimento, da leitura, mas de uma performance ocular. Refiro-me mesmo a uma dimensão desportiva, física, muscular, e não somente de percepção. Tal como em Ninja, a escrita/desenho é feita em boustrophedon, o que nos obriga a que olho tenha de fazer movimentos de zigue-zague bem diferentes do que já naturalmente faz na leitura de imagens e, mais especificamente, de banda desenhada. É possível fazê-la, mas o apoio de um dedo é quase obrigatório em algumas páginas, e uma atenção que não vacile é imperativo, caso contrário somos lançados numa rota sem sentido, literalmente descarrilamos. Poder-se-á já aqui complicar, vendo nestes movimentos serpeantes como que um encontro entre as culturas e os modos de ler ocidental e japonês: ou há de facto um feliz zigue-zague (junto dos destemidos e destros) ou há uma desarrumação (junto dos analfabetos ou os falhos).
Esta sensação talvez surja já começada a leitura de Maggots, mas coloco-a aqui como um fundo que assoma à superfície e transborda por sobre ela. Além do encontro de modos de ler há um encontro de escritas: o fundo das folhas originais é sempre, sempre visível, por mais que Chippendale o apague com carregadíssimas tramas – mais do que manchas de tinta a negro, parece que o autor rabisca obsessivamente os espaços em branco até estes desaparecerem quase por completo. O que fica é uma espécie de “sujidade” gráfica, de poeira constante, de uma chuva de letras indelével naquelas representações. Nalguns casos, o autor elabora complicadíssimos padrões de signos que nascem dos pré-existentes kanji ou dos caracteres dos silabários japoneses, padrões semi-psicadélicos, de uma legibilidade apagada, e que por vezes ganham estatuto de um objecto supra-dimensional – em relação às dimensões do mundo encerrado nesta história - que tem um papel activo na história que decorre. Nos primeiros casos em que surgem balões de fala, as palavras vêem-se interrompidas, ou melhor, as letras que as compõem são escritas em torno dos caracteres do fundo original. Há sempre um encontro com a escrita pré-existente.
A leitura do livro apresenta-nos uma narrativa. Tal qual como em Ninja, há aqui uma acção perseguida, uma trama narrativa simples e “fast-forward”, um protagonista (Potato Head) que se metamorfoseia e alcança poderes supra-naturais, universos feitos de vários níveis ou domínios, travessias feitas através de alçapões, escadarias, buracos na parede ou no solo, voos com o auxílio de máquinas ou com poderes sobrenaturais... Há uma absoluta subsunção à materialidade e causalidade da aventura & acção, mas como que apurada aos seus mínimos elementos e sem rodeios ou desvios. Nada do seu aspecto de acumulação sígnica impede a existência de uma estória inteligível, que mostra confrontos, viagens, relações, amores, etc. E as metamorfoses sofridas pelo protagonista podem ter a ver com a aprendizagem, dessa que se faz somente em movimento, em contexto, em conflito.
O que se desvela pelo livro.
São recorrentes as imagens em torno de olhos: arrancados, perdidos, substituídos (pelos de mortos), trocados em combate, tornados brinquedo, ou modo de transporte, etc. É como se o autor dissesse – pelos elementos que compõem esta sua banda desenhada – que deveremos olhar com atenção, para além do esforço perdido, para além dele mas nunca para lá da visualidade que se nos apresenta. Está tudo sob os nossos olhos. Basta movê-los. Demovê-los do hábito e chocá-los com um novo modo de ver.
Estas ideias de olhar em movimento, de modos de leitura diferenciados mas que não obstante se encontram num território em comum, de uma aventura que obriga à travessia de estratificações e metamorfoses leva-me a colocar a seguinte pergunta: estaremos perante uma obra que coloca em jogo, em acção, os princípios que regem a estratificação do mundo, ou dos mundos, que é sabida da perspectiva xamânica? Afinal, aqui temos uma personagem, Hot Potato ou Potato de Heat, que atravessa estes mundos-limiar, os vários estratos subterrâneos e supracelestes que se encontram ladeando o nosso mundo consensual, em busca de um qualquer objecto/objectivo que nos é evasivo ao entendimento – porque não pertencemos à mesma tribo -, em que se confronta com vários inimigos surgidos súbita e inesperadamente, alguns dos quais acabam por se tornar aliados, outros o contrário, havendo sempre um recorrente cruzamento com uma personagem que é a amada (Rabbit), em que várias vezes os confrontos levam a metamorfoses do seu corpo, a uma divisão em dois e, mais tarde, a reunião, logo seguida de nova separação, tudo terminando no que parece ser uma menos efémera morte. E, uma e outra vez, à flutuação dos olhos enquanto objectos exteriorizáveis e ofertáveis e passíveis de trocas e aquisição.
No fim da história, Potato Head desaparece no que parece ser um grande cataclismo, num buraco no solo que tudo engole, mas do qual se liberta um fantasma que revela que a última questão colocada pelo protagonista era em relação a um objecto que não existe – uma pirâmide viva. É este fantasma que diz que não existe. Mas nós testemunhámos uma pirâmide (a dos signos de que falei atrás, o objecto “supra-dimensional”), e podemos dizer “sim, existe”. O xamã sai daqui para ir ali, e retorna, para, aqui, falar dali: não é disso que se trata numa leitura em segunda mão?

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