20 de junho de 2008

Marvel Fairy Tales, Cebulski et al. [Ricardo Tércio, Nuno Plati, João Lemos] (Marvel)

Uma das palavras mais em moda em relação aos super-heróis é “revisionismo”, e pode-se estabelecer toda uma história desse capítulo no interior da tradição dos super-heróis (não assusta de modo algum empregar esta palavra, “tradição”, se tomarmos em conta que desde o aparecimento do Super-Homem em 1938 que se seguiriam centenas, senão milhares, de variações ou desvios desse pressuposto). Já havíamos falado disto a propósito de Ultra, tendo apontado a leitura de How to read superheroe comics and why, de G. Klock, como ferramente fundamental para essa mesma história particular. Porém, como havíamos também apontado, julgamos que é parte intrínseca da estruturação e natureza deste género o revisionismo, tendo ele começado na sua própria origem, com, como os exemplos mais óbvios e claros, a rápida evolução interna às “personalidades” do Super-homem e do Batman. É como um aguilhão circunrevoluto a todo o género (supondo que uma teoria dos géneros permita todas as ambivalências e cruzamentos possíveis) que o obriga a retorcer-se e relançar todos os seus elementos internos, por todas as direcções e em todas as direcções, tentando exaurir todas as combinações.
A colecção Marvel Fairy Tales é uma nova combinação, fazendo convergir as mais famosas personagens e histórias (repetidamente míticas, como as “histórias de origem”) da Marvel (até agora, sucessivamente, os X-Men, o Homem-Aranha e os Vngadores) com “contos de fada”, quer os das tradições europeias – Capuchinho Vermelho, Gata Borralheira – quer os de outras paragens – o japonês Momotaro, o africano Anansi – ou com clássicos de obras literárias infantis – o Pinóquio de Collodi, o Peter Pan de Barrie, a Alice de Carroll... Esta é uma colecção de tom divertido, singelo, capaz de conquistar leitores bem mais jovens (reequilibrando as políticas de conquista de públicos mais velhos com imprints/séries como a Max ou a Ultimate Marvel). Sendo cada uma das histórias escritas por C. B. Cebulski, nota-se uma constante no que diz respeito ao estilo da estruturação das histórias, e que tem a ver com uma redução, quase ad absurdum, das histórias em questão nos seus factores mínimos de estruturação actancial, quase como se as houvesse diminuído a um esqueleto de funções (à estruturalismo russo) e as preenchesse depois com as personagens da Marvel que melhor conviessem a esses papéis. O que acaba por suceder, em primeiro lugar, é encontrar algumas combinações curiosas, mais ou menos expectáveis (o Visão como Pinóquio, o Homem-Aranha como... o Homem-Aranha africano Anansi, os Vingadores como os Meninos Perdidos liderados pelo Capitão América/Peter Pan, e o Capitão Gancho “preenchido” pelo Klaw), ao passo que outras são menos imediatas e será preciso pensar nas relações internas ao Universo Marvel e a todo o historial da personagem.
Mas em segundo lugar, o que acontece é uma surpreendente leitura de que, afinal, não se havia saído do mesmo território ficcional, de uma mesma função. No fundo, convenhamos, as histórias de super-heróis sempre foram uma forma moderna dos “contos de fadas”. Não é que exista uma correspondência total entre os dois, mas onde os “contos de fada” preenchiam a necessidade da sua categoria nos seus tempos, tanto explanatórias (“porque é que existe isto?”, "porque é que isto é assim?”) como admoestatórias (“cuidado com isto”, “não faças aquilo”), emergentes na Idade Média e com uma vida prologada durante séculos, o dealbar da modernidade específica do século XX obrigaria a uma categoria correspondente mas que lhe fosse apropriada: as narrativas e programas utópicos foi uma dessas categorias, os super-heróis outra, virada para um público mais massificado. Órfãos que se tornam amados (ou temidos) por todos, catástrofes de saúde pessoal que são recompensadas como super-poderes (e super-responsabilidades), desafios tremendos sempre recompensados no final (antes de se lançarem num novo ciclo de desafio-recompensa), já para não falar de outros elementos presentes mas abaixo destes nódulos narrativos: transformações, espaços mágicos (a Fortaleza da Solidão, a Caverna, a Zona Negativa), objectos mágicos (escudo, anel, martelo, exo-esqueleto), rituais de passagem, alianças, alianças com antigos inimigos e inimizades com antigos companheiros, contactos permanentes com exemplos anteriores, advertências dos mortos, etc. É um sem-fim dos pontos comparáveis. Aliás, de certo modo, antes de Cebulski já J. Michael Straczynski havia notado nessas possibilidades, conforme o que escreveu em Spider-Man: The Other, interpretando o papel e função do protagonista.
O outro ponto de maior publicidade, pelo menos em Portugal, desta série, é o facto de haver a participação estreante de três autores jovens portugueses. Com a excepção de Kyle Baker e uma colaboração de Mike Allred, a esmagadora maioria dos ilustradores eram desconhecidos, ou pelos menos não autores de primeira linha. Uma vez que estamos perante reduções, e não explorações profundas destas possíveis relações entre os dois géneros, e com elas chegar a uma exploração ainda complexa do que seria possível escamotear desse contacto, portanto, tendo apenas um intuito de criar pequenas histórias simples, de rápida absorção e fruição, essa escolha por pesos mais leves não é de surpreender. E a maioria desses ilustradores apresenta trabalhos feitos num estilo relativamente derivativo de todo um batalhão de autores anteriores visíveis aqui e ali no mainstream norte-americano. São os casos de Niko Henrichon, de quem já havíamos aqui falado com Pride of Baghdad, mas que apresenta no seu Spider-man fairy tales # 2 (lenda de Anansi) uma versão deslavada de Charles Vess, de Nick Dragotta (SFT # 4), que mais parece um clone de Mike Allred (o qual participa neste mesmo número, aumentando ainda mais o grau deste epigonismo paupérrimo), de Kei Kobayahi (vários números), um artista em miríades de outros que requentam o mais pobre estilo mangá (entendendo esta palavra como pejorativa sobre a produção mais comercial, e que a Marvel já havia tentado anteriormente, como no horrendo Iron Man: House of M)...
E é aqui que os autores portugueses, a saber, Ricardo Tércio (SFT # 1, construído sobre o Capuchinho Vermelho), João Lemos (Avengers Fairy Tales # 1, sobre o Peter Pan) e Nuno Plati (AFT # 2, sobre o Pinóquio) marcam um grau ou dois de diferença estilística, bem mais próxima de um equilíbrio interno deste projecto. Nada tem a ver com orgulho nacional ou coisa que o valha, é apenas uma constatação de factos, observação, análise e comparação. Se com os anteriores artistas ou se revisitavam, pela enésima vez, territórios já esgotados (ou ocupados por um nome e, por isso, desprovidos da necessidade de epígonos – nada contra imitadores, não esquecendo que Sienkiewicz, Frank Miller e Howard Chaykin eram “iguais” a Neal Adams quando começaram, Al Columbia a Sienkiewicz, Klaus Janson a Frank Miller...), ou se procuravam opções já secas à nascença, por todos os graus de “realismo” da banda desenhada, este trio opta antes por uma linguagem bem mais estilizada, personalizada, clara e leve. Seguramente que terão, cada um deles e todos em conjunto, uma linha de influências detectáveis ou aproximáveis (mangá em geral, as escolas de character design publicitário, artistas vários, de Mignola a Jim Mahfood), mas não me parece que este estilo em geral, e sob o qual podemos agrupá-los, ser o mais normal neste género de banda desenhada. Já havíamos detectado pontualmente estilos relativamente próximos, de estilos mais “redondos”, “cute”, na banda desenhada de super-heróis (ou géneros contíguos) de tom mais “sério” com artistas como Teddy Kristiansen, Damion Scott, Philip Bond, Darwyn Cooke e Tim Sale; ou poder-se-iam falar das séries “infantis” baseadas nestes universos, nas quais penso que Marvel Fairy Tales também se inscreve, como Batman Animated, Tiny Titans, Super Friends, etc.
Ponderando de um modo ou de outro, como tendência crescente de aceitabilidade destes estilos num território mais atreito ao “realismo” (mesmo que seja torturado por esteróides gráficos como os de Jim Lee ou Rob Liefeld ou Todd MacFarlane), ou como gesto absolutamente inédito e original (um novo estilo, “europeu” – palavras da equipa de produção Marvel, de acordo com João Lemos), é uma curiosa reinvenção de todos os pressupostos da companhia Marvel através de um desvio para um seu público bem mais jovem ao invés de um subir a parada através da ultraviolência (e sem moloko) ou de desafios cada vez mais insuperáveis (as sucessivas Crises – DC - e Guerras – Marvel – de que falei com OMAC).
Todos estes artistas empregam as suas forças e características (e fraquezas) numa construção equilibrada do propósito da história. Nuno Plati e Ricardo Tércio apresentam um estilo muito redondo, onde as personagens parecem ser construídas a partir de estruturas modelares, e as acções e emoções são transmitidas por estratégias largamente convencionais e marcadas, em cenários desenhados com informações mínimas de contextualização espacial, apenas o suficiente para criar o ambiente necessário. O que se coaduna perfeitamente quer com a natureza de “conto popular perdido nos tempos” do Capuchinho Vermelho quer as “emoções à flor da pele” do clássico de Collodi. As figuras de João Lemos são mais feéricas, naturalmente, e até femininas, e os cenários mais densos e populados, de novo e ainda que diferentemente, um equilíbrio perfeito para a história de crianças que não desejam de modo algum crescer e manter-se no reino que as suas mentes, que não distinguem os poderes da imaginação dos da percepção real, e a fantasia da responsabilidade mais cingida, projectam num “para sempre”. Num caso e no outro, este equilíbrio não tem a ver com um preenchimento das suas prestações gráficas a uma ideia preconcebida, mas antes a que é o casamento entre os estilos destes artistas e esta escrita de Cebulski que leva a essa leveza final.
É curioso que as capas desta mais recente série, Avengers Fairy Tales, todas da responsabilidade da artista francesa Claire Wendling, remetam a um trabalho reminiscente dos grandes mestres da ilustração inglesa da passagem do século XIX para XX, como Walter Crane, Richard Doyle ou Arthur Rackham, com fundos decorados, enquadrados ou padronizados (à la William Morris). É uma outra forma de querer fazer essas outras ligações com as tradições geográficas (Europa) e temporais (século XIX) da recriação do imaginário infantil (ou mesmo sua origem, no começo do conceito do “infantil” da sociedade burguesa e capitalista de 1800) e, assim, um repesar do Universo Marvel, o qual, provavelmente, começa a ter poucas formas de se reinventar.
Que formas reservará o século XXI para cumprir as mesmas funções?

Nota: agradecimentos a João Lemos, pelas conversas descontraídas e divertidas, onde se lançaram raízes para novos projectos futuros na Marvel, como os Marvel Yiddish Tales, X-Martim Moniz, O Cancioneiro Fantástico, e Avengers at Sea: The Adamastor War.

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