3 de agosto de 2008

Nous est un autre. Michel Lafon e Benoît Peeters (Flammarion)

Como indica o subtítulo deste livro, trata-se de um “estudo de duetos de escritores”, compreendendo trabalhos de colaboração, influências e ascendências fortíssimas, trabalhos de editores vincadamente balizados sobre o dos escritores, mas também abusos e roubos, e ainda aquilo que em francês se chama de um trabalho de um nègre (e também em Espanha) e em inglês de “ghostwriting” (alguém que escreve em nome de outrem, que assina). Fala-se de Jules Verne e o seu editor Hetzel, de Marx e Engels, de Colette e de “Willy” (ou Henry Gauthier-Villars, o seu primeiro marido, ambos na foto da capa), de Deleuze e Guattari, de Borges e Casares, de Julio Cortázar e Carol Dunlop. Mas, e é este capítulo que importa discutir neste espaço do lerbd, fala-se também de Hergé, entre as páginas 266 e 284. (os outros capítulos encerram igualmente uma iluminação para certas questões literárias, culturais e da banda desenhada, mas não é este o espaço para a sua discussão). (Mais) 

O que importa aos dois autores é, para além das obras naturalmente de colaboração (dois exemplos, a Bíblia e as Mil e uma noites), digamos, colectiva ou cultural, é ultrapassar a ideia de que a colaboração não dá que pensar os termos literários (num sentido lato, artístico), e, oferecendo estas “histórias críticas, ou se preferirem, biografias de colaborações” (pg. 10), chegar àquele espaço que pertence não a este ou aquele autor, mas ao intervalo produzido por ambos. Estudam-se práticas e métodos de trabalho, descobrem-se traços das condições da sua origem, variações internas ao texto e retornos obsessivos de certos temas (paráfrase, pgs. 11-12), para construir esse retrato.

Sabendo-se a biografia de Hergé (tal como constituída pelos livros do próprio Peeters, a saber, Les débuts d’un illustrateur, Le Monde d’Hergé e Hergé, fils de Tintin – traduzido em Portugal pela Verbo – e a biografia de Pierre Assouline), não se trata aqui de descobrir novos factos ou desvendar segredos, mas antes procurar iluminar a questão de um modo mais concentrado. Passa-se pelos primeiros passos com o abade Wallez, a amizade frutífera com Tchang Tchong-Jen, a colaboração profissional com Alice Devos e depois Edgar P. Jacobs e Jacques Van Melkebe, a abertura do estúdio, as imposições de Louis Casterman, o impedimento da continuação de Tintin sem a sombra viva de Hergé.

Os autores querem fazer sublinhar particularmente qual a força que pertencia a Hergé em exclusivo, que era o aspecto da escrita, da direcção da vida da personagem, e que levou Hergé àquele grito final, análogo ao de Flaubert, de “Tintin (et tous les autres) c’est moi”. Este entendimento, que não descura “o desenhador virtuoso de uma desenvoltura elegante”, pretende sublinhar sobretudo Hergé, escritor (para pedir emprestado um título a Jan Baetens). O surgimento do atelier, a instauração de um funcionamento vertical de trabalho, que transforma o autor num “chefe de atelier”, mesmo que seja visto como uma “evolução quiçá inelutável, não é um progresso do ponto de vista artístico”. A sucessão de colaborações leva a uma crescente preocupação pelo detalhe, a exactidão da informação, o equilíbrio documental, a ancoragem na realidade, a complexificação das tramas, mas não leva nem a um ritmo de produção mais seguro nem a um maior patamar de qualidade (mesmo no interior do seu território da aventura infanto-jevenil). Uma das provas, digamos assim, é que a Maio de 1940, a um passo antes das colaborações criativas mais profundas com Jacobs e Mekebe, já havia Hergé criado, sozinho, oito aventuras do Tintin, quase todas as histórias do Quick et Flupke (Quim e Filipe entre nós) e de Jo et Zette [et Jocko] (Joana, João e o Macaco Simão). “O seu estilo gráfico havia-se afirmado ao mesmo tempo a sua perícia narrativa. As farsas desajeitadas do princípio haviam dado lugar a romances em imagens, alguns de entre os quais as suas primeiras obras-primas”. Fala-se portanto da sobrevivência de uma “desconfiança” de Hergé em delegar o seu trabalho principal, a saber, o da estruturação ou agenciamento da narrativa, o de “deixar às imagens a possibilidade de verdadeiramente conduzir a narrativa”. Preencher linhas, cores, cenários, letras, sim, mas a construção propriamente dita, nunca, o que levou a dissabores entre amigos e, também, no interior do próprio Hergé.

A parte mais interessante deste estudo não recai na novela famosa entre Hergé e Jacobs (em que o primeiro “se dá conta de ter encontrado em Jacobs bem mais do que um colaborador técnico: um cúmplice a tempo inteiro, o primeiro e verdadeiro alter ego que havia encontrado desde Tchang”), mas do papel de Jacques Van Melkebe (aliás, os autores apoiam-se na biografia deste por Benoît Mouchart, A l'ombre de la ligne claire. Jacques Van Melkebeke, le clandestin de la BD), que os apresentara. A foto aqui ao lado é dos três (Jacobs, “Van Melk” e Rémi), retirada do livro. Van Melkebe e Hergé haviam colaborado na escrita de algumas peças de teatro juvenis, mas ainda que na banda desenhada Hergé fosse muito ciente do seu poder, e o seu amigo fosse mesmo tímido no seu papel, tendo “tendência a diminuir as suas contribuições” – chega mesmo a dizer que é mais “um gagman que situa as suas ideias num contexto” – os autores destacam a qualidade de Van Melkebe como um “argumentista maiêutico” (a expressão é de B. Mouchart): “trocando ideias regularmente com Hergé, [Van Melkebe] ajudava-o a dar à luz as suas ideias, impelindo-o a ir mais longa na sua própria direcção”. Não obstante o seu papel ter sido o do que hoje chamaríamos de facilitador, houve uma grande contribuição de Van Melkebe para a escrita do díptico O Segredo do Licorne e O Tesouro de Rackham o Terrível, que muitos consideram a obra-prima de Hergé em termos de estrutura narrativa. São esses passos aqui analisados, ainda que brevemente.

Mas isso leva a uma questão pertinente e profunda. Se o papel do amigo de Hergé e Jacobs foi marcante no modo como estes autores (e outros) construíram as suas narrativas, de tal maneira que há um cunho de Van Melkebe deixado nessas obras (e que assumia outras formas, como a sua presença nesta vinheta d’O Segredo), será que podemos interrogar de facto as obras – sejam elas quais forem – como camada para chegar à personalidade humana do autor, em vez de nos cingirmos a uma investigação e um diálogo com elas mesmas? Lafon e Peeters indicam mesmo que a cena em que Haddock “revive, mais do que as relata, as aventuras o seu antepassado” é de Van Melkebe, apontando assim que todos os sintomas superficiais (isto é, na “superfície” da obra, onde estão os signos que podemos interrogar) da crise dos fantasmas identitários e familiares de Haddock foram criados como estratégia narrativa, e da parte não de Hergé mas de Van Melkebe. Logo, e eis o cerne da questão, como levar a sério interpretações psicologizantes sobre um livro e não uma pessoa! Estas informações, por si só, que fazem parte da investigação biográfica da obra (para além dela enquanto texto estético ou semiótico), desregulam em absoluto as leituras psicobiográficas insuportáveis e abusivas de um Tisseron, e seus discípulos, como Ana Bravo.

Estas colaborações, por mais temporárias e pontuais que fossem, foram inflectindo a obra de Hergé na direcção que tomou, foram aportando-a ao patamar que atingiu, podendo afirmar nós que houve um movimento de folhetim estereotipado a trabalho de relevo literário, de uma cartografia a uma geologia. Não é, de modo algum, tirar a Hergé o que é de Hergé, as suas qualidades e os seus defeitos, os seus merecimentos e os seus aspectos a criticar, mas simplesmente um modo de entender que uma obra, ta qual um homem, jamais é uma ilha.
Nota : agradecimentos a Jan Baetens, por me ter colocado na rota deste livro.

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