16 de outubro de 2008

O Armário Psicótico e Boas Maneiras. Marriette Tosel (Edições Eterogémeas)

Desenho, escrita, urdidura, pensar. Pt 4.
Neste pequeno volume encerram-se dois livros. Dois títulos, duas histórias, duas séries de desenhos, dois gestos geminados.

Marriette Tosel dá-nos O Armário Psicótico e Boas Maneiras. Ambas as narrativas tratam de segredos de família, feitos daquele pó mesquinho que se varre para debaixo do armário e se promete vir a limpar seriamente mais tarde mas que se adia sempre e, depois, quando ganha vida própria e autonomia, vinga-se sobre a limpeza moral pública que se desejava visível no verniz social. Mas o que se guarda desse modo estala quando menos se espera. Boas Maneiras segue a mesma linha mas torna-se uma espécie de pequeno manual de educação que mostra como o desejo de educação dos pais, quando criado sobre os pecados e as mesquinhices dos adultos e a sua cegueira para com as liberdades possíveis, criam não belos filhos, mas monstrinhos. Podem até ser geniais na sua monstruosidade, mas monstros à mesma, o que não é bom para todos. Ou para ninguém, no fundo. (Mais) 

Os dois livros, em conjunto, demonstram como os pecados ocultos dos pais podem ser herdados pelos filhos. Como escreve Mike Cartmell num ensaio (em Landscape with Shipwreck), “quer sejamos possuídos ou possuamos nós mesmos o fantasma, tal não significa que sejamos assombrados por fantasmas ancestrais, mas antes pelos segredos dos nossos ancestrais, segredos cuja natureza nos é desconhecida….” Aquilo que se havia calado é herdado para vir a falar outra língua. Se em O Armário Psicótico aquilo que havia sido escondido, suprimido, reprimido, retorna, assumindo toda uma potencialidade de metamorfoses, isto é, confissões visíveis (como a mala de caixeiro-viajante do pai revela as “facadas no matrimónio” a cada paragem), em Boas Maneiras observamos mesmo a transição de pais para filho, em que este responde à violência anterior com a sua própria maneira de ser transgressivo, violento, maldito.

Estes livros têm duas dimensões, ambas de “badalhoquice” moral. A primeira, já vimos, é o segredo, que mancha de dentro para fora, como o rubor no rosto, mas que também tem outras expressões. A segunda é um erotismo, no sentido de movimento pelo sexo, mas mais açaimado que livremente expresso e que, por esse constrangimento, também estalará em pequenas perversões, em crueldades diárias mas que, segundo reza a percepção policial, são “normais” (a “loucura da normalidade”, de Gruen, de certo modo).

Sobretudo graças à presença do erotismo, ou da sexualidade mesmo, há uma primeira presença de tradição nestes livros. A de Pierre Louÿs: o erotismo sexual não existe nos dois livros de Tosel de uma forma directa, nem voluptuosa e desiderativa, como nas ilustrações de Georges Pichard para Trois Filles de Leur Mére, mas também não tomba nos abismos de Bruno Schulz, no limiar da abjecção, no desequilíbrio de um dos elementos do casal, que se entrega ao domínio do outro. Há, bem pelo contrário, um equilíbrio – entre o Sr. e a Sra. Smith em O Armário Psicótico, e entre o casal de Boas Maneiras. Mas um apagamento, também. Não se pode falar na assunção de um fetichismo, como ocorre, por exemplo, na obra Uma luva de Max Klinger; o objecto toma todo o espaço do palco, torna-se o passageiro sujeito de cada cena, para logo ser substituído por outro. Há, portanto, uma objectificação, mas ela é total, não serve de espelho ou vaso para trazer a presença do que se deseja, quando na sua ausência.

Em O Armário Psicótico, apesar de termos uma voz narradora, a personagem principal é o próprio armário – o tal espaço para onde eram atirados os trastes, os “segredos inconfessáveis”. Tal como em The Curious Sofa, de E. Gorey, uma peça de mobília torna-se a consciência, o Grilo (que-não-deveria-ser) Falante desta família de bem. Os segredos, que ganham forma de “goma espessa” (a neblina da súbita confissão, que nos cega) e de “estranhas criaturas com poderes ainda mais estranhos” (os monstros da razão), darão lugar ao que parecem ser provérbios morais (amorais, melhor dizendo) e a profecias dos homens a vir (que não entendemos, e sê-lo-á necessário?, se do passado, se do presente ou se do futuro desta família Smith).

Boas Maneiras inverte a fórmula narrativa (além de acrescentar a cor, ainda que dominadas de negras tramas): começamos com provérbios incompletos, conselhos, adágios (“O homem carinhoso acaricia a cabeça da mulher”, reza um deles, ao lado de um desenho de um machado sobre o de ma maçã esburacada; “o casal perfeito partilha tudo”, com uma luva de boxe sobre o maxilar superior de uma dentição artificial; “o genro dedicado pensa na sogra todos os dias”, com este desenho ao lado...), cujo diálogo surdo ou des-complementar com as imagens nos desarruma o humor negro, para depois atentarmos às intimidades de um casal, cultor de uma vida social pacata e modelar (idêntica à dos Smiths, se é que não são seu avatar ou eles mesmo) e, ao mesmo tempo, de prazeres íntimos vincados de perversão. Essas duas camadas servem, parece-nos, de preparação do território à verdadeira vocação e eixo central desta segunda história, que é a educação de um filho, o qual “logo protegeram com genuína vocação canina”: o caminho dedicado dessa educação – que apenas a “leitura” das imagens especificará quão violenta e derrotada – levá-lo-á a tornar-se “psiquiatra... com distinção e louvor”, mas cuja máscara de retenção, um verdadeiro açaime, leva a pensar o pior e a repescar o adjectivo do Armário.

Ainda com Louÿs, recordemo-nos que este escreveu o Manual de Civilidade para Meninas (editado entre nós pela Fenda, numa tradução de Júlio Henriques). É raro que os desejos dos pais se reflectem realmente nos filhos. As mais das vezes, as suficientes diferenças de prismas entre uns e outros fazem com que o trânsito que se desejava atravesse um qualquer desvio e acabe de um modo bem diferente do que aquele projectado pelos progenitores e educadores. Podemos chamar a isso livre-arbítrio, liberdade, essência humana. O livro de Louÿs é um sincero e franco desvio desses desejos, através do humor obsceno. É claro que o livre-arbítrio, isto é, o pequeno intervalo que nos é dado como vida, a medida que nos cabe, é empregue por estas personagens para a mentira, o logro, a devassidão, talvez mesmo a estupidez. Que regressará, na forma de punição. Marriette Tosel será como que uma herdeira da Condessa de Ségur que tenha lido muito cedo Louÿs, passando por Klinger, Ernst, Gorey, e até Topor: há aqui, na superfície, um aparato de pequeno manual de educação, de moralismo, mas o veículo leva a uma paragem bem diferente da que se esperaria.

Não há, também, movimento algum. Além de corroborar a ideia avançada atrás, a da objectificação dos sentimentos retratados, suscita uma outra obrigação ao olhar. O acto de leitura – que implica um movimento dextro dos dedos, uma combinação com os olhos, um acordo entre leitor e livro – faz com que surja um movimento, mas há ainda uma outra dimensão de movimentos, que tem a ver com os intervalos criados pelas próprias imagens, na sua separação, sobretudo naquelas imagens que “ilustram” o que chamei de provérbios, ou aquelas que ilustram os objectos de desejo, o chapéu-assador-de-castanhas, as cuecas-casa-de-cuco, os óculos-fechadura (não se podem chamá-los de “objectos impossíveis”, como ocorre em relação à obra de Escher: não são impossíveis!, são possíveis, e a sua possibilidade é essa mesma: a de existirem enquanto desenhos).

Há uma outra pequena dobra em O Armário Psicótico: a presença, no espaço de representação, no plano de composição, de algo que serve de sinal ao próprio artista. Por duas vezes surge a imagem de um homem, visto de costas, com um chapéu, cortado pelos ombros. Na primeira vez, a parte de trás da cabeça do homem-artista tem o buraco de uma fechadura, e o chapéu está todo furado como se fosse um assador de castanhas. Diz o texto: “O público espreitou a cabeça do pintor e as ideias figuram-lhe pelo chapéu de coco”. A segunda, apresentaria a mesma figura, mas em vez do homem vemos uma estrutura como se de um bengaleiro de chapéus se tratasse, de casaco e uma estrutura, uma armação, em forma de chapéu. “O pintor, incompreendido, vendeu a cabeça numa casa de penhores”. Estas duas presenças encontram-se no seio das “profecias” de O Armário. De novo, perguntamo-nos se se tratará de um futuro, realmente, ou já de um passado, como no conto de Dickens. Pode ser também uma rasteira, à la Magritte (com o qual estes dois desenhos têm uma irmandade de sombra iconológica). Ambos os comentários têm a ver com a fuga do artista a determinados tipos de interpretação das obras de arte, sobretudo aquelas precisamente deterministas, que se pautam pela biografia, o psicologismo de algibeira, as soluções fáceis de solução (e remeto de imediato para a nota sobre os heterónimos deste texto). Podemos falar, portanto, de “O retrato do artista (duas vezes) enquanto caixa de sapatos”. Uma mera medida de transporte, abandonada como cartão velho e com um cheiro suspeito. As “ideias” roubadas ao artista, como se um artista tivesse “ideias”! Não tem, nunca as teve, as ideias não lhe são pertença. Ou que o artista possui são as suas ferramentas de trabalho, o seu esforço, deixado atrás, na terra, enquanto obra, e esta deve valer no seu sentido holístico. Se se lhe retira a suposta “ideia”, fica um saco murcho.

Logo, a ideia não é traduzir as psicoses mal escondidas no armário, nem acatar as boas maneiras, mas aceitar que a “goma espessa” nos caia no colo e, com ela, moldar novas formas. É para isso que serve o desenho narrativo, não para determinar formas cristalizadas. Com ou sem açúcar, que é coisa que na obra de Tosel (e seus pares), nem sombra.
Uma nota final sobre a questão dos heterónimos: Esta é uma dimensão do trabalho de T.M. que deve ser levada a sério. Posso estar enganado, mas a esmagadora maioria das vezes em que surgem notícias sobre os seus livros, sempre sob um heterónimo, o articulista ou jornalista faz questão de imediatamente revelar o nome do autor. Essa informação, o “verdadeiro nome”, não se encontra em nenhum momento dos livros, é sempre uma informação extra-textual. Qual a razão por esse desvendamento? Em primeiro lugar, é uma questão de exposição de poder e de vaidade. O articulista tem uma informação que o leitor (médio, vulgar, desprevenido) não tem. O revelá-la dá-lhe um poder, o de “especialista”, de “profissional”, de “pertencente à elite”. O trabalho do crítico é bem diverso: é o de interrogar a obra. As vicissitudes e circunstâncias da vida real de um homem, que é por força da sua natureza autor de uma obra heteronómica, não faz parte desse discurso, é palha pessoal, matéria de intimidade, a qual está fora das questões críticas.

Nos livros de T.M. há duas presenças perenes e que têm por nome “assinatura”. A primeira é no seu sentido menos problemático, a marca deixada no canto dos desenhos (todos, em série ou não, apresentados em nome próprio ou heteronómico, em exposição ou publicação, como este, da exposição Rojo y Blanco, apresentada na galeria Spectrum Sotos): um círculo com um t plantado no vértice do m). A segunda assinatura é aquilo a que se pode dar o nome de “estilo” ou, com Philippe Marion, graphiation (que traduzo como “traço”). Um artista pode ter a capacidade de se fazer representar ou de se expressar através de vários estilos, mas a maior parte das vezes isso deve-se a uma publicidade de um virtuosismo, ou à assunção cíclica de manias de trabalho, mais do que uma genuína necessidade em procurar vias diversas de expressão. Seria necessário encontrarmos casos concretos para poder tornar essa ideia clara, mas vejam-se os casos de Moebius, em que a(s) assinatura(s) (ambos os sentidos) circunscreve uma atitude ontológica e criativa, mesmo que se encontrem entrosamentos entre si (veja-se ainda o ensaio de Marion na MEI 26), ou de Filipe Abranches, “camaleão ameno” (cf. o meu texto no catálogo do FIBDA 2006). Mas no caso de T.M. a entrega a essa estratégia seria vista como uma concessão aos “rodriguinhos”, a efeitos de “pirotecnia”, e não à assunção de uma real e profunda vontade. Encontrar-se-ão diferenças abissais – não apenas materiais, mas de fundo, de valor do gesto – entre Max Tilmann e Tim Morris, Terry Morgan e Tom McCay, Murai Toyonobu e, agora, Marriette Tosel. Descobrir-se-ão irmandades: no trabalho de tramas, nos contornos dos corpos, na mescla de objectos, é certo, mas os humores, os alcances, as implicações, as tradições e as sombras lançadas são muito diversas. É certo que os objectos de desejo de Tosel recordarão alguns dos de Morris. Que a educação prometida pelo casal parece ter sido aquela dada a Morgan, ainda que no caso desta, a tenha derrotado, e não fortalecido. E mais ainda, são eles e elas todos vincados precisamente por partilharem uma assinatura comum. Não se trata de uma ilusão momentânea de prestidigitador, que se escapula mal o truque se explica. É antes uma perene magia, uma mania contumaz por mais que no seja apresentada. “Assinatura” tem a sua raiz em signum, algo que é apontado e onde reside um significado. Eis a magia de T.M.: hoc signum vinces.
Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta do livro.

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