11 de dezembro de 2008

D&Q Showcase no. 5. AAVV (Drawn & Quarterly)

A dupla vida de Amanda Vähämaki, parte 2.
(Continuado daqui). Quanto ao número 5 da D & Q Showcase, apresenta-nos três histórias. Uma primeira, de Anneli Furmark, artista sueca, sobre a aventura de um casal homossexual à casa dos pais de um deles, experiência na qual se prefere esconder o amor para preparar o terreno à confissão para “mais tarde”. O que se adivinha e sobrevive dessa visita, porém, é que, como reza a canção, será sempre “mais tarde” e “mais tarde é tarde demais”. A segunda é de um autor norte-americano, T. Edward Bak, que explicita estar mais interessado na banda desenhada enquanto “veículo de processos automáticos de narrativa, para além da música caótica da memória”. Este trabalho é muito surpreendente por em primeiro lugar ser reproduzido (ou assim o parece) directamente de um diário gráfico, com todas as suas vicissitudes e acidentes, como se fosse importante, perdão, sendo importante esse suporte físico e suas características para informar (“dar forma”) a história em si, que parece rondar um cenário pós-apocalíptico na América do Norte, mas onde mais importa a vida interna do protagonista, as suas memórias, arrependimentos e emoções que as anedotas que o rodeiam. Em segundo lugar, porque se sacrifica a unidade estilística dos vários passos da história para a submeter a uma multiplicidade de períodos narrativos, tempos visitados, ambientes emocionais, e atitudes para com as memórias. Um misto de relatório e de conto de fadas em termos visuais, é também um trabalho fortemente melancólico, ainda que de uma ligeireza muito subtil.
Finalmente, segue-se a história, sem título, de Amanda Vähämaki. Visualmente, é bem diversa da anterior, pela introdução da cor. E, apetece exultar, que cor! Certo, não estamos perante uma mestria e plasmação da cor como se verifica em Mattotti ou Conefrey, nos quais a cor assume um protagonismo activo e estruturante. É verdade que a cor em Vähämaki está subsumida ao programa figurativo e narrativo, mas mesmo assim mostra uma exuberância “quente”, de patchwork, ou das pesadas camisolas de lã que algumas personagens usam para combater o frio que as envolve. Nalguns pontos, essa cor concentra-se em torno do corpo das personagens, aliadas às linhas do lápis rasuradas, criando como que uma aura ou um fumo que delas se desprende.
O que une o trabalho de escrita da autora, a nosso ver, desde Campo di Babà ao objecto pseudo-narrativo Squirels First e agora estes dois contos, é que se constitui sempre uma narrativa com um universo diegético nítido, em termos dos seus elementos, para depois se exercer sobre ele uma deslocação. Paulatina e linearmente, são apresentadas as personagens, o espaço da acção, e o seu tempo. Nenhum desses elementos se reveste de qualquer problemática em particular (metalepses, por exemplo) e todos apresentam-se sob unidade. Mais, a própria forma narrativa moldada por Vähämaki é relativamente linear e descritível sem desvios de maior, sem, literalmente, extravagâncias. Porém, e eis aqui a discernível característica do trabalho da autora, há sempre uma qualquer interferência nesses mundos, uma evasiva, um elemento disruptivo, que lhe parece natural, que não é de surpresa nem burlesca nem assombrosa para as personagens, mas que se reveste, mesmo assim, esse elemento, dizemos, de uma natureza que poderia ser caracterizada como maravilhosa, fantástica, absurda, ilógica, espantosa, desviante, estranha.
No caso desta história, um casal de adolescentes, amigos, atascados no tédio de uma pequena vila piscatória (finlandesa?), num dia de folga, usam o controlo da televisão do pai do rapaz para viajarem no tempo. Sim, uma máquina do tempo sob a forma de comando de televisão. O momento dessa viagem é mostrada por um punhado de vinhetas, com a paisagem alterando-se ao longo das estações e uma, duas ou três linhas paralelas e em ziguezague, como sucede (sucedia) às fitas de vídeo quando as rebobinamos para trás mas observando-se a imagem. Essa viagem permite-lhes acompanhar uns pastores que vão até uma pequena ilha rochosa, na qual dispõem seixos e pedras numa qualquer forma misteriosa, jamais desvendada. Depois retornam ao seu tempo e sítio, e retomam a vida de todos os dias. Depois percebemos que talvez se trate de uma pequena vingança em relação ao pai (?), um pastor, mas de almas, um religioso taciturno. O pequeno furto ou ocultação do controlo remoto impedirá o padre de voltar no tempo, de procurar uma qualquer redenção de um pecado não indicado. Os jovens adentram-se pelo dia soalheiro e pela floresta, nesta magnífica prancha aqui mostrada. Assim termina a história, aberta sobre uma paisagem apenas vazia de nada, mas cheia do futuro que eles parecem querer construir com tranquilidade.
Nada é claro nem revelado, mas jamais se trata de uma falha, bem pelo contrário, fazendo-se dessa indeterminação narrativa, no seio de uma narrativa de resto clara, um valor artístico particular para estes trabalhos. Estarei errado na identificação destes elementos e querer colocá-los sob uma mesma égide, signo, até mesmo tema que atravesse a obra de Vähämaki como um baixo contínuo? Uma espécie de representação ficcional quer dos nossos desejos permanentes, cultivados desde a infância, sobrevivendo até à idade adulta, em podermos aceder a “outros mundos”, a “fantasias” e “sonhos”, “escapismos” até?, quer um certo mal-estar da sociedade contemporânea em que sentimos a existência de algo “que está mal” mas sem o poder identificar facilmente? Claro que podemos optar por chamar-lhe “crise”, “criminalidade”, “aquecimento global”, mas no fundo é apenas um mal du siècle que nos pertence por direito e herança, e a que a artista toma o pulso e traduz em figuras.

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