15 de outubro de 2009

Os Republicanos. João Sousa Cardoso (auto-edição)

Os Republicanos é uma instalação, que se pode descrever como sendo de imagens fotocopiadas coladas nas paredes de um espaço expositivo, o Uma Certa Falta de Coerência, pertencente ao circuito das artes contemporâneas da cidade do Porto, coordenado por André Sousa e Mauro Cerqueira. Esta exposição foi comissariada por José Maia e é como que uma segunda parte de uma exposição anterior intitulada A Terceira República. Não falaremos tanto da exposição, pois faltam-nos os instrumentos mais correctos, mas se nos atrevemos a tal é por a exposição ser acompanhada, complementada, transportada (já veremos qual a palavra mais correcta) por uma publicação, que partilha o título. Os Republicanos é também um jornal... ou além disso...
O gesto interessante, a dimensão performática, de instalação, que dá a esta publicação a aura de continuidade da exposição, acontece por um simples dispositivo, mas que ganha contornos “mágicos” na sua execução. Uma vez que as folhas são impressas a uma cor apenas, o vermelho, e a instalação no Uma Certa Falta de Coerência é iluminada por uma plúmbea luz vermelha eléctrica, acontece que, no próprio local, as imagens da publicação são “apagadas” (anuladas), tornando-se apenas visíveis fora da instalação (revelando-se fora dessa sala). É como se pudéssemos apenas visitar a câmara do Atlas composto por João Sousa Cardoso – a palavra Atlas deverá remeter tanto para o trabalho do historiador de arte Aby Warburg como para o compêndio de trabalho do pintor alemão Gerard Richter – e fôssemos obrigados a compreender a disposição das imagens, a sua cartografia própria, o modo como cada uma delas se relaciona numa parede, entendida como plano de composição constituindo uma unidade de leitura pertinente, e consequentemente cada sala, cada piso e, finalmente, o espaço/instalação como um todo, sem que possamos pensar na sua eventual reestruturação num veículo portátil, arquivável, transmissível. E apenas a saída desse espaço fundasse a sua própria rememoração possível no corpo da publicação. Assim, Os Republicanos-publicação passa a ser a memória possível, a relativa cristalização, uma tentativa de escrita, d’Os Republicanos-instalação, necessariamente mais fluida, entrosada na percepção líquida e flutuante do seu visitante, uma perfomatividade mais “oral”, por assim dizer.
Não é por acaso que tenha recorrido à palavra “Atlas”, sobretudo pelas inflexões de Warburg e Richter. No que diz respeito ao primeiro, prender-se-á com a dimensão de se tratarem de materiais de trabalho que visariam uma discursividade arquivística-histórica, que permitisse uma construção de uma memória pautada por uma qualquer categoria que esteja operativa no momento do próprio acto de rememoração. Isto é, o arquivo, existindo, permite que a cada um dos actos rememorativos, dependendo do que o pauta, possa seguir uma narrativa nova. Quanto a Richter, não deixam de ser materiais de trabalho, fundamentos de utilização posterior, mas em que o discurso se permite a uma mais livre revisitação e reinvenção das formas, da associação livre de conceitos, de um acto mais criativo (ficcional, até?) da memória.
Os Republicanos não deixa de ser umo certo retrato do “político”, que tanto pode partir da escala da ideia local (de Porto a Portugal) até à da internacional e mesmo mundial, e desde o estritamente político-partidário/ideológico à ideia da cidade global, abrindo-se ao círculo completo da “cultura”, da intelectual à pop, provocando todo o tipo de associações possíveis.
Comissariado por José Maia, não é de estranhar as afinidades electivas entre os trabalhos de Cardoso e os de Maia: presença de imagens múltiplas que permitem associações, ausência de comentário, apresentação de arquivos que apontam a um momento de desconforto cultural e político da história de Portugal (o colonialismo, tema recorrente em Maia). Cardoso rasga um panorama mais geral do que Maia, sem que isso permita fazer qualquer tipo de hierarquia. Não se trata de uma diferença de grau, mas de natureza: Maia concentra-se num episódio fulcral da construção da identidade portuguesa – ou da crise de identidade contemporânea; Cardoso abre o seu panorama a uma circulação livre entre todo o mundo. Apesar do aspecto “pobre” da instalação (em suma: fotocópias de fotografias de jornais e revistas e cartazes – retiradas da internet, explica-se – coladas às paredes por autocolante, de uma forma tosca e aparentemente ao acaso), Os Republicanos parece abrir-se – através da associação livre de temas, círculos, disciplinas, contextos – ao infinito.
O sub-título da publicação, “Um jornal de actualidades”, aponta de imediato para essa problemática dos significados: afinal, “actualidades” é usualmente termo de notícias frescas do dia. Duas leituras se aventam possíveis, aqui.
Por um lado, poderá surgir como uma crítica lateral, não panfletária, irónica, ao modo como o jornalismo contemporâneo é conduzido: a ideia de infotainment cada vez mais divulgada entre os noticiários televisivos, a emergência de certas notícias (usualmente relacionadas com processos envolvendo políticos) nos períodos eleitorais, os aproveitamentos políticos por quaisquer faits divers (aliás, os faits divers têm uma dimensão desde logo curiosa na construção dessa identidade “actual”, mais rapidamente sendo esses os “temas de conversa”, os domínios “fracturantes” e que, por isso mesmo, lançam uma rede de relações identitárias), a notícia-vídeo (isto é, algo que se torna notícia não pelo seu peso informativo intrínseco mas pela existência de documentação filmada, depois divulgada vezes sem conta), e até mesmos as estratégias da divulgação das notícias sob uma forma cada vez mais atomizada (como se constata pelo estilo do jornal diário I e a forma de staccato do Jornal da Noite da SIC).
Por outro lado, a total acessibilidade de canais de informação e divulgação permitidas pela internet, e os instrumentos que tanto servem de canal de primeira mão como de reinvenção (penso no Youtube, em primeiríssimo lugar), quase torna qualquer facto que desconheçamos, por mais recuado que possa ser – uma entrevista televisiva a um rocker em 1978, uma newsreel de 1929, um documentário sobre a II Guerra Mundial (como a recente série televisiva, com materiais filmados na época, World War II: The Holocaust) –, numa “actualidade”. Cardoso, colocando a fotografia do tiranicídio de Moussolini lado a lado com uma outra do incêndio no Chiado de 1988, outra de Catarina Furtado e Carlos Malato, e ainda a capa do jornal parisense L’Aurore de 13 de Janeiro de 1898, com o famoso “J’Accuse” de Zola em torno do caso Dreyfus, quer provocar sobre nós tanto uma certa capacidade de associação e emergência de sentido como a sua própria crítica. O que é importante e o que é banal? Encontramos fotografias de uma piscina, de um salmão, uma página de uma fotonovela, de anúncios, de uma escadaria de metro com os azulejos de Maria Keil, uma foto promocional dos Heróis do Mar e outra do próprio João Sousa Cardoso com colegas de um projecto performático. A ideia de “memória colectiva” parece ser gozada, como se o nome de Mário Soares tivesse o mesmo peso que o de Quique Flores na memória nacional. Como se o agrupamento da Conferência dos Açores (Barroso, Blair, Bush e Aznar) cumprisse o mesmo papel que o dos Heróis do Mar. Escrevo “como se”, seguido do conjuntivo, pois falho na apreciação que Cardoso quer fazer passar: são iguais, são de facto idênticos no seu peso.
A assinatura do Tratado de Lisboa, Serge Gainsbourg e Jane Birkin, a morte de Orfeu de Dürer (curiosamente, uma das imagens trabalhadas e estudadas por Warburg, reforçando os laços da nossa associação feita acima), Rui Reininho aos 20 anos, Álvaro Lapa, Zidane após a cabeçada, Nelson Évora depois da conquista da medalha olímpica, o enterro de Buíça, a escultura de Cutileiro no Parque Eduardo VII...
O que é importante e o que é banal? A resposta torna-se agora menos retórica, e menos vazia, ao mesmo tempo que se descobre que perde todo o sentido. Todas estas imagens são públicas, são coisas. São “coisas públicas” e nada mais para além disso.
Nota final: agradecimentos a Mauro Cerqueira, pelo tour e a publicação. Para mais informações, ver Uma Certa Falta de Coerência.

1 comentário:

Bruno Kelsch disse...

Isso nada tem a ver com o post, mas você já teve acesso à Ragú nº7? A antologia brasileira de quadrinhos?
Me escreva um e-mail brunokelsch@hotmail.com!