8 de julho de 2010

Meat Cake. Dame Darcy (Fantagraphics)

Notas de Verão 2. Antologia dos primeiros 11 números do comic book do mesmo título, reunindo alguns dos trabalhos aí publicados, este tomo permite encontrar ou reencontrar as personagens recorrentes de Darcy (Effluvia, Richard Dirt, Wax Wolf, Hindrance e Perfidia, Strega Pez, Campi the Selfish Shellfish, Granny, e outros) – as quais, o mais provável, serão transferências ou decalques fantasiados de conhecidos e amigos da própria autora, ou até de facetas dela mesma, com Richard Dirt assumindo claramente a vez e a voz da própria Darcy. Dame Darcy é uma das autoras que compõem o leque diversificado e magnífico do “boom” dos alternative comics dos anos 90 nos Estados Unidos, mas apesar de certos possíveis elos a alguns dos seus colegas, esta autora não se lança/lançou a histórias autobiográficas de um modo tão directo como Debbie Drechsler, Julie Doucet, Chester Brown ou outros autores com quem poderemos encontrar algumas afinidades... Mesmo quando Darcy fala de si mesma na primeira pessoa, num abertíssimo pacto autobiográfico, isso ou serve para desviar a atenção para um estranhíssimo episódio fabuloso e delirante, ou então para recordar uma qualquer raiz de estranheza do seu passado.
Pois a matéria com que Darcy trabalha é aquela de que os pesadelos são feitos. Aliás, a sua província é mesmo a do estranho, do fabuloso, recuperando tanto tradições antigas (contos de terror, canções de pirata) como de novas plataformas de expressão dessas mesmas pulsões antigas (bruxaria moderna, culto da terra, etc.).
O desenho de Darcy, as mais das vezes apenas a traço negro, quase esboçado, e que procura uma imitação impura, quase ao acaso, de tramas mais seguras, quer trazer à baila um ambiente vitoriano por demais óbvio, mas, do ponto de vista narrativo, sempre uma época vitoriana vista pelas lentes de algumas distorções criativas, sejam elas o afunilamento pelos penny dreadfuls, as baladas tenebrosas da época, os contos de L. L. Clifford ou toda a óptica de terror gótico ou do romantismo suicida (Poe, Mary Shelley, Byron, etc.), e, claro está, a figura tutelar das ficções de Gorey. Essas referências ganham também maior corpo ao vermos a quantidade de pequenas histórias baseadas em contos tradicionais, cantigas e lengalengas, ambientes que recordam filmes mudos, e até o convite feito a Alan Moore para escrever uma história, presente neste livro, que cria um círculo coeso entre os habituais elementos de Moore, Darcy e Gorey.
No entanto, sem querer tornar a questão do género uma bandeira desfraldada sem qualquer razão e ao desbarato, há também uma busca por termas femininos. Não é só por ser uma autora (esse seria o último argumento), nem as personagens serem femininas – com a excepção do erradamente galante, misógino e doido Wax Wolf (será este uma corruptela actancial, adulta, do Max de Sendak, Max-enquanto-lobo, mas já morto?)… mas por todas as questões que se levantam na representação dos corpos dessas personagens, o foco particular na fatídica fortuna de toda a classe de mulheres, a expressão de poder que elas exercem sobre os demais, mesmo que ganhem contornos violentos (há muitas princesas, rainhas, mulheres que simplesmente abandonam os maridos e os filhos por uma felicidade totalmente autónoma, etc.) E também Effluvia é o espelho dessa personagem, maléfica sereia que puxa marinheiros excitados contra as rochas (de certa forma, e no estrito círculo da cultura popular de massas a que pertence, é algo que Lady Gaga tenta cumprir nos seus vídeos: mulheres já não há beira de um ataque de nervos, mas que o controlam e dirigem contra os homens ou as mulheres que as impedem expressar esse mesmo nervosismo).
Nalguns momentos, o desenho de Darcy ganha um nível de maior complexidade, apenas a traço, tornando possível a associação a Tony Millionaire, por exemplo, nalgumas vinhetas. Neste volume existem ainda dois trabalhos de tiras ou desenhos reversíveis, recordando Gustave Verbeek. Ainda, incluem-se outros pequenos exercícios, tal como o da inclusão de bonecas de papel para vestir com as suas personagens, uma tentativa de materializar de uma forma mais desdobrada o seu trabalho (e aqui próxima do que Ware faz nos seus livros).
Estas várias dimensões da autora provam-se pelas outras actividades pela qual é conhecida, e que passam por disciplinas variadas como a música, o cinema, ou o fabrico de bonecas de pano. Todas essas actividades confluem-se no seu estilo de vida e de arte, que constrói uma constelação de referências mais ou menos coesas, como se foi vendo.

Nota: agradecimentos à autora, pela simpatia e troca de palavras no Festival de Beja. Tivemos a oportunidade de fazer uma entrevista em vídeo a Dame Darcy, da qual daremos notícias quando for caso disso; agradecimentos a Paulo Seabra, João Figueiras, Manuel do Espírito Santo, Paulo Monteiro e Filipe Abranches por todos os gestos que permitiram essa entrevista.

Sem comentários: