6 de agosto de 2010

Cent pour cent (Cité International de la Bande Dessinée et de l’Image)


Uma outra exposição foi organizada pelo reformado CNBDI – o original, francês, que faz jus ao seu nome de facto – e segundo um modo muito curioso de revisitar e ponderar a história (e a memória!) da banda desenhada: disponibilizando-se exactamente 100 pranchas/arte original pertencentes ao espólio daquela instituição, convidaram-se outros tantos 100 artistas a trabalhar contemporaneamente para as reinterpretarem como bem entendessem. Como reza a apresentação do projecto, “um verdadeiro manifesto sob o signo duplo da memória e da criação contemporânea”.
A questão principal não está na selecção em si das pranchas, que apenas poderia emergir daquela existente no espólio, nem sequer nos artistas escolhidos. O processo é certamente bem mais complexo do que aquilo que se substancia no livro em si: convites não aceites, desafios por cumprir, oportunidades perdidas, más interpretações, falhas de comunicação... que sabemos nós? Poderão encontrar pistas dessas noções no discurso de Jean-Phillipe Martin, comissário da exposição, aqui. Assim sendo, apenas poderemos falar daquilo que se apresenta efectivamente em Cent pour cent.
Não há praticamente época histórica ou pólo de produção, género ou estilo que não seja revisitado (se bem que 100 é um número que automaticamente deixe muita coisa de fora, considerando que o museu não contém exemplos provindos de alguns países que teriam algo a mostrar de interessante, como Portugal). Há pranchas de todos os azimutes. Quanto aos autores que “respondem”, vêm também de variadíssimos países (há uma incidência maior nos francófonos e norte-americanos, como não poderia deixar de ser, mas há uma presença substancial de sul-coreanos, o que mostra ser uma cena particularmente activa na sua internacionalização e processos de contacto), estilos e escolas... Há casos de autores homenageados que também participaram como homenageadores. É o caso de Gilbert Sheldon, que reinterpreta o prazer que tinha ao ler as tiras subtilmente subversivas de Beetle Bailey/Recruta Zero de Mort Walker para o reintegrar na subversão mais aberta dos seus próprios Freak Brothers, e tem uma história retomada/continuada por Ana Miralles; ou de François Schuiten, que “continua” uma prancha de Cuvelier, e tem uma das suas reinventadas por A. J. Gonçalves; ou ainda Killofer, recriado por Kim Dae-Joong e inquirido por Ruppert & Mulot, mas que reinscreve os textos de Aristophane numa interpretação sexual da tensão original. Há ainda os casos das amizades directas ditando os diálogos possíveis, como Trondheim sobre David B., Lécroart sobre Trondheim.
Seria extremamente produtível e interessante transformar este catálogo numa plataforma de discussão histórica, patrimonial, teórica, filosófica e estética da banda desenhada. Aliás, o documento a que chamámos a atenção no início apresenta uma espécie de tipologia – as secções da exposição - dos trabalhos propostos na exposição (olhares cruzados, diferenças, teatros de papel, de um continente a outro, risos e sorrisos, continua, companheiragens, lições de desenho, lembro-me, história, tentação da prancha, um olhar moderno), que convidamos a ler. Tentar compreender a pertinência, por exemplo, de cada uma das reintepretações. Existe um número reduzido de autores que infelizmente partem da ideia de que são capazes de “melhorar” a prancha original, procurando aumentar a história, verbalizar o que não era dito, e acaba por surgir um exercício de fraqueza. Há ainda aqueles autores, também poucos, que dão apenas um passinho em relação à influência, refazendo a história com pequenas nuances. Mas depois há aqueles que, em menor ou maior grau de intervenção sobre a matéria original, ou num grau maior ou menor de exploração pessoal, fazem surgir algo de novo e de reinterpretativo. Por exemplo, Charles Burns redesenha quatro vinhetas de uma tira de Chester Gould, retira-lhes o texto e altera a ordem. O que era originalmente a continuidade das aventuras cómico-dramáticas de vilõs em fuga torna-se uma apropriação muito especial de Burns ao seu “universo” referencial. Baudoin (e poderão ver no vídeo acima essa relação) escolheu trabalhar sobre um pormenor da última vinheta de uma prancha de Buzzelli, as pernas de um cavalo, para mergulhar nas suas conhecidas reflexões sobre a poeticidade do desenho e as consequências da sua expressividade. Posy Simmonds, uma autora maior, utiliza uma tira de Reg Smythe (Andy Capp/Zé do Boné) para apresentar uma contundente e divertida crítica da representação da mulher na banda desenhada (e não só). Loustal aborda uma prancha satírica de Jack Davis para a mergulhar num ambiente hooperiano. Deprez ausculta os fantasmas de David B. de uma forma materialmente significativa. Katchor, a partir de um episódio molecular de Cham, faz desdobrar toda a massa macroscópica que nela se ocultava. Michel Rabagliati expõe o modo como o Gaston de Franquin ocupa a sua vida. E por aí adiante.
Quanto aos autores portugueses, que destaco particularmente no pobre) vídeo, temos Luís Henriques que parte de uma prancha de Frank King (e de uma das suas mais conhecidas estratégias visuais) para criar uma reflexão sobre o significado de Portugal para consigo mesmo e para os “de fora”, Filipe Abranches visita um dos seus autores dilectos, Jacques Tardi, para reinventar com pequenos desvios as aventuras de Adéle... “Noir-Sec” em Lisboa, e António Jorge Gonçalves bebe de uma das pranchas de Brüsel, de Peeters-Schuiten, para mostrar um dos seus mapas-diagramas que também parecem querer retratar Lisboa em hora de ponta.
Até certo ponto, este projecto faz-nos recordar um outro associado ao cinema, Lumière et Compagnie (1995), em que se convidaram 40 realizadores a utilizar o cinematógrafo (a máquina dos irmãos Lumière) para fazerem um filme no interior de um quadro específico. Os resultados são o mais díspares possíveis, com vários graus de integração própria, transformação do processo num questionamento reflexivo sobre o próprio meio, plataforma de experimentação nova, ou mera desculpa para uma leveza breve. Tudo isto cria, portanto, um material de excelência para questionamentos sobre as estratégias visuais da banda desenhada, e as veredas que elas abrem para o pensamento geral sobre a história da arte, da imagem, do meio. Um livro que tanto servirá o propósito de auscultar o passado como de fomentar a experimentação futura. Ao passo que o "catálogo" da exposição do Kunstverein Hamburg procurava eleger uma linha de força contínua entre alguns objectos heteróclitos para compreender uma forma ampla desenhada pela integração, despreconceituada, da banda desenhada (e/ou ilustração) na história da arte/cultura/política, esta outra procura não tanto uma história de fontes ou sequer a estruturação de um cânone, mas fomentar uma atitude plástica para com a banda desenhada, e apesar de em alguns casos se revestirem os resultados de um oubapianismo relativaemnte frouxo, é essa ideia primeira que emerge como a mais interessante e, eventualmente, promissora a outros gestos futuros ou até mesmo como desbloqueadores criativos.
Nota: agradecimentos a Filipe Abranches, pelo empréstimo do catálogo e alerta às informações.

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