6 de fevereiro de 2012

Do the Gods wear capes? Ben Saunders (Continuum)

Integrado numa colecção dedicada aos estudos interdisciplinares de literatura, filosofia e religião, inflectidas todas estas áreas no cadinho dos estudos culturais e nas novas abordagens pós-escola de Birmingham, que permitiram reavaliar as negociações e apropriações não-hegemonizantes que ocorrem na(s) cultura(s) popular(es), este volume, que tem como sub-título Spirituality, Fantasy, and Superheroes, tenta analisar num grupo relativamente diminuto mas coeso de personagens/histórias a potencialidade de interpretação sobre os usos que esses mecanismos ficcionais específicos permitem enquanto acesso à espiritualidade. O autor parece entender a dimensão espiritual da vida como algo descritível (mas não definível) enquanto estar-se em consonância com o outro, com o seu sofrimento, o seu pedido, os seus sentimentos e emoções.
“O super-herói da banda desenhada norte-americana tem antecedentes óbvios nas literaturas antigas grega, nórdica e afro-asiática. Mas o Super-homem, a Mulher Maravilha, o Homem Aranha e o Homem de Ferro, e os seus muitos companheiros são figuras de fantasia que negoceiam fenómenos modernos tal como a emergência da ciência, o declínio das estruturas tradicionais da religião, os processos de industrialização e de urbanização, as pressões do nacionalismo, e os efeitos do capitalismo. Não são guerreiros nomádicos, que atravessam as terras, mas heróis que habitam cidades, com poderes e ferramentas e ‘identidades secretas’ que surgem como respostas específicas às condições espartilhadas da existência metropolitana” (pg. 142). É esse quadro que permitirá a Saunders ver no Super-homem uma criatura benevolente e compreensiva, ou no Homem-Aranha uma encarnação do “Cristo sofredor” (sob os conceitos de Kierkegaard). Todos os conceitos envolvidos, é claro, são alvo de uma abordagem suficientemente esclarecedora, já que os termos nem sempre se traduzem da mesma forma em contextos variados. Importa sempre fixar, mesmo que apenas na circunstancialidade de um trabalho, o escopo de cada um desses mesmos termos.
Saunders discute, portanto, o modo como a banda desenhada - para mais um género muito específico e continuamente criticado como mais formulaico que outros - se torna um alfobre para temas de uma complexidade tremenda, transversal à experiência humana.
No entanto, temos sempre a sensação de que os instrumentos analíticos de Saunders nunca são suficientemente desenvolvidos para poder levar a cabo o seu projecto de um modo mais acabado. A análise de conteúdos, por assim dizer, nunca pode ser levado a cabo sem uma análise formal seja em que forma de arte for. Buscando um caso paralelo noutro local, recordemo-nos da oposição que as novas perspectivas (na sua época) de André Bazin trouxeram no estudo crítico do cinema. Bazin preferia a grande profundidade de campo, planos longos e uma fotografia realista à estética da montagem (teorizada por autores como Eisenstein), pois elas “preservavam a continuidade natural da realidade, em vez de a cortar e a analisar”, cuja consequência está no facto de Bazin “enquanto Personaliste [uma corrente filosófica de inspiração cristã] , acreditava num universo ordenado mas incognoscível, o qual temos de perscrutar longa e arduamente para poder descobrir a sua essência - um Deus de amor” (citamos um estudo de John Hess, “La politique des auteurs; World view as aesthetic”). Esta breve comparação, indubitavelmente manca em muitos outros aspectos, permitir-nos-ia ainda assim procurar modos de apreciação da linguagem mais ou menos tipificada dos comic books de super-heróis (paginações incontroversas, linearidade quase absoluta, figuração nítida, espectros cromáticos simples, usos dramáticos de splash pages, um contido leque de poses e expressões melodramáticas, sublinhado tudo com um uso judicioso e regular de mecanismos simbólicos da banda desenhada - linhas de acção e movimento, raias de emoção [“Spider-sense”], onomatopeias, etc.) e tentar compreender como é que elas concorreriam para a transmissão ou exploração dessas realidades espirituais. É claro que isto abrir-se-ia a todo um outro rol de considerações e problemas, já que a convergência entre a consideração do cinema como uma arte de quase pura reprodução mecânica da realidade (sob as perspectivas dessa crítica Baziniana, depois inflectida pela geração dos Cahiers) não só levantaria a sua própria crítica como implicaria uma tensão totalmente outra em relação à banda desenhada. O que importa notar, porém, como consequência deste excurso, é o facto de Saunders abdicar de uma colecção avantajada de close readings, preferindo um estudo alargado da história - quase biografista, apetece dizer - destas personagens (Super-Homem, Mulher Maravilha, Homem Aranha e Homem de Ferro) para fazer emergir sentidos simbólicos mais gerais. A nosso ver, porém, essa não terá sido a melhor estratégia.
Além do mais, a “religiosidade” não é, jamais, um fenómeno trans-, ou melhor, a-histórico (nem tampouco os sentimentos). Por exemplo, ocultar a dimensão política de Jesus é um desserviço mesmo à sua importância religiosa (tal como o será em relação a outras figuras, de Zaratustra a Akhenaton, de Gautama a Baal Shem Tov, de Maomé a Ghandi). Recorrer à equação entre a verdade, a beleza e a justiça poderá ajudar a um princípio motor para ler a personagem do Super-Homem, mas nem ela enquanto personagem nem essa equação filosófica está livre das circunstâncias históricas. O próprio Saunders lê o primeiro Super-Homem (de Siegel e Shuster) como a figura revolucionária e ligeiramente socialista do New Deal da sua época, antes de se tornar o “poster boy” da hegemonia das políticas norte-americanas e um símbolo esvaziado. Por isso o autor considera essa personagem menos messiânica - como poderia dar a entender a sua origem “mosaica” e até mesmo a presença dessa “psique” no imaginário norte-americano, se seguirmos as lições do Harold Bloom de Omens of the Millenium - do que uma espécie de Gedankexperiment: “como seria, como se comportaria uma figura de total abnegação?” Curiosamente, isto abriria um território de aproximação do conceito do Übermensch de Nietzsche, com o qual o Super-homem da DC não se coaduna, mas isso não é explorado.
Não é que desejemos encontrar uma definição absoluta do Super-Homem (pois novas histórias virão que o continuarão a inflectir por toda uma série de transformações) ou mesmo uma comparação cabal com figuras religiosas (que incorreriam no perigo de não serem ancoradas histórica e culturalmente, como acontece em exercícios generalistas à la Joseph Campbell), mas se aquela figura é um ser perfeito, como poderá entender ele, no fundo, o que é ser-se humano, demasiado humano? É verdade que o autor tem em conta “a componente anti-teológica do pensamento humanista”, que leva mesmo a um “ateísmo engajado” (citando Kate Soper, pg. 113), mas dá-nos sempre a sensação que é para retornar a um “mesmo” transcendental. É preciso continuamente recalibrar os textos concretos com os instrumentos ou as perspectivas eleitas. No que diz respeito aos textos, não se podem considerar todas as histórias do Homem-Aranha ou do Super-Homem como idênticas nas suas características internas. É certo que tanto um como o outro são personagens-marcas registadas, de uma só companhia (da Marvel e da DC, respectivamente), mas não há total homogeneidade nos estilos gráficos, estratégias narrativas, regimes sócio-políticos de representação, relações trans- e intermediáticas, integração na realidade histórica em que foram publicados, ao longo de décadas. O Super-Homem surgiu em 1939, o Homem-Aranha em 1962, e desde então têm tido uma vida ficcional ininterrupta, complexa, múltipla, não-redutível a uma só narrativa maior coerente e fechada, e quase sempre com grande fortuna no que diz respeito quer à sobrevivência económica das suas vidas enquanto mercadorias quer à permanência, e subsequentes usos, no imaginário, mais ou menos global.
A criação deste objectos culturais obedece a uma complexa rede entre vontades individuais e mecanismos sociais inextrincáveis entre si. Isso significa que não se podem procurar explicações reduccionistas dessas mesmas criações, destes textos, com qualquer leitura. Elas fazem parte de uma economia determinada de produção de sentido e da sua subsequente reprodução padronizada (daí que os super-heróis sejam um género facilmente reconhecível, apesar das muitas variações internas). De certa forma, Saunders procura isolar uma via de interpretação possível, a qual tem necessariamente de alisar as suas texturas múltiplas de forma a eleger os elementos mais centrais para a sua argumentação, mas parece-nos que nesse processo se eliminam elementos a mais, conducentes a uma interpretação que poderia tomar uma forma final totalmente díspar se fossem tomados em conta.
O autor parte, por exemplo, de uma palavra carregada para parte da sua investigação, que é “amor”. O autor procura explicar como é que ele entende este sentimento e em que medida é que ele é aplicável, mas tendo em conta que está a analisar um corpus específico e sob a perspectiva, também específica, de um nódulo interdisciplinar, poderia ter procurado avançar um conceito mais exacto. Afinal de contas, que tipo de amor é que Saunders pretenderia explorar? Qual é o amor que é mais pertinente na análise que pretende? Os antigos diferenciavam a pietas da agapé, a paixão da amizade, tudo formas distintas do que parece ser hoje um só sentimento por os misturarmos no único nome de “amor”. Mas não amamos os nossos amigos - que “escolhemos” com base numa vontade relativamente racional - como amamos os nossos pais (filiae) ou terra (patriae) - cujos laços surgem pela circunstancialidade inescapável - ou como amamos os ou as nossas amantes - as mais das vezes impelidos por tudo menos a razão.
Trabalhando no interior de uma ontologia limitada somente pelas noções epistemológicas da verdade, do conhecimento e da representação, perde-se o contacto com outro tipo de intensidades que também regem a experiência humana. Os afectos têm aqui um papel preponderante, como é de esperar: o investimento nestas personagens parte de uma fortíssima sensação de empatia, de associação imaginária, de um “faz-de-conta” que dá acesso a poderes - não somente as capacidades super-físicas destas personagens, mas as possibilidades sociais e políticas de acção que eles cumprem - inalcançáveis na sociedade real, a não ser através de uma sublimação que passa pela procura de possibilidades reais: “não posso parar balas com as mãos, mas que posso fazer pela segurança dos outros?”.
Saunders acaba por parecer um humanista no sentido em que crê que o indivíduo é o livre e único responsável da sua própria construção, logo estando-lhe disponíveis todas as escolhas morais e sociais. Mas sabemos desde Althusser e Foucault, acima de tudo, que a própria noção de sujeito é uma construção com determinações sociais, e que o indivíduo apenas o é instalado numa rede de relações de poder.
Até que ponto é que a análise de super-heróis que apenas agem em relação a crimes menores e moralmente claros - a menos que exista alguma teoria que possa advogar os aspectos positivos do roubo armado, da violação, do assassinato, etc. - é suficiente? Porque não analisar as aporias criadas pelas variadíssimas histórias de não-intervenção do Super-Homem em conflitos internacionais? Porque não incluir análises de séries novas e politicamente complexas como The Authority ou Ex Machina, de resto alvo de outros estudos?
Nota: este livro tem necessariamente de entrar em diálogo com outros títulos recentes, como Graven Images. Religion in Comic Books and Graphic Novels e Classics and Comics, de que esperamos dar conta em breve. Agradecimentos à editora pelo envio do livro, e ao autor, pela ajuda a consegui-lo.

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