20 de julho de 2012

Baba Yaga and The Wolf/Wax Cross. Tin Can Forest (Koyama Press)

Adeptos de Promethea ou de Hellboy encontrarão aqui seguramente um fio que se mantém no rumo comum dessas outras obras: misticismo, folclore, lendas, magia, entrega às forças ocultas, nocturnas, oníricas, telúricas, ctónicas, lunares, estelares, sobrenaturais que navegam ainda nos interstícios do saber humano. Como usar a banda desenhada numa função mágica, ou como usar elementos encantatórios para conjurar um acto poético. (Mais)

Baba Yaga and The Wolf é, aparentemente, uma narrativa que ou bebe, ou adapta mesmo, de um conto tradicional (húngaro, por sinal?), com um número de personagens fechado e encadeados uns nos outros pela necessidade das acções e das relações estabelecidas entre eles. Apesar de ter uma resolução que não é totalmente clara em termos textuais, mas que possivelmente está presente na última imagem (um último gesto feito sobre as plantas que têm a solução sobre uma maldição que caiu sobre o protagonista, Ivan), o livro parece cumprir os requisitos do conto folclórico. Já Wax Cross é mais complexo, apresentando uma narrativa que tanto remete para essas mesmas fontes tradicionais como a vivências contemporâneas. Na verdade, poderíamos imaginar que os autores determinaram quais os narratemas (à la Propp) que iriam utilizar, e depois criaram um edifício que os mistura a todos, numa espécie de jogo combinatório. Tin Can Forest é o nome colectivo com que responde a dupla canadiana Marek Colek e Pat Shewchuk, mas a distribuição é muito curiosa: o primeiro assina “história e imagens” e o segundo “elementos decorativos, imagens de plantas e símbolos”. Logo à partida, por uma questão de hábito, pensar-se-ia que seria Colek o “autor” e Shewchuck um “colaborador”, na mesma ordem do que aqueles que fazem cenários, trabalho de legendagem, cor, separações, artes finais, design, e por aí fora. Independentemente do processo criativo ser ou não feito de uma forma íntima, taco a taco, paralela, aquela descrição técnica construiria de imediato uma certa hierarquia. Todavia, a forma como os autores assinam em conjunto o trabalho aponta desde logo a um seu entendimento da multimodalidade da banda desenhada como parte intrínseca da sua emergência textual. Quer dizer, não lemos apenas a “história” nem as “imagens”, tampouco “as imagens com o texto” mas sim todos os elementos complicados uns nos outros (apontando à tal “terceira opção” da imagemtexto de Mitchell). Não há apenas uma travessia por estas páginas que se consubstancia numa tradução cognitiva, intelectual, de “conteúdos verbalizáveis” – a sinopse diegética, a descrição do estilo – mas uma rede densa de sensações que emerge por apreciarmos todo o conjunto. E neste caso em particular, esses modos são de uma variedade assinalável.

Os livros – sem lombada, mas com detalhes físicos de grande qualidade - apresentam de facto uma estrutura visual que os colocam a meio-caminho entre as estruturas mais convencionais da banda desenhada (divisão do plano de composição em cenas múltiplas, com ou sem divisão ortogonal das vinhetas, utilização de balões de fala) e as de livros ilustrados (escolhas por momentos separados no tempo, icónicos, uma fluidez anti-realista dos episódios, a própria tessitura visual do objecto). As narrativas, como se entende, remetem a um fundo popular, folclórico, logo essa união não é de todo despropositada. Até mesmo o tom do texto é conveniente para uma leitura pausada, em voz alta, que vasculhe todas as inflexões possíveis da voz, imitando sotaques, idades, predisposições das personagens para dar maior volume dramático às lendas. Já que as imagens se prestam menos a essa apresentação dinâmica, é esse o caminho da sua tradução em acto, pelos leitores. Wax Cross, por exemplo, tem uma dimensão textual mais próxima da prosódia da magia, e até das suas funções fenomenológicas. Numa das apresentações do livro, fala-se de “alquimia”, que, se seguirmos a lição de David Soares de que se trata, acima de tudo, de uma doutrina que pugna pela “busca da eukrasia (boa ligação) das substâncias naturais” (Compêndio, pg. 167), iluminará a forma como então todos aqueles elementos heteróclitos citados pela narrativa se unem num só cadinho, o do próprio texto (“tecido”) final.

Quase se poderia tomar Wax Cross como uma espécie de grimório aplicado àquela narrativa em particular. Cada duas páginas constituem um episódio, visual e estruturalmente distintos, mas não é de forma nenhuma claro como é que eles se encadeiam uns aos outros; há até mesmo uma dificuldade – de grau, senão mesmo de natureza – em compreender uma narrativa inequívoca a emergir de toda a leitura. Trata-se mais de uma intensidade mantida ao longo dela e que se fortalece no fim, pela falta de fechamento absoluto.

De acordo com estudiosos da área, os contos tradicionais húngaros revelam de forma mais clara as suas raízes mitológicas mais antigas, oriundas do xamanismo ural-altaico, sem as influências cristãs que surgiriam mais tarde e mais visíveis noutros países do Leste Europeu. Apesar de surgirem referências aqui ao “Príncipe Jesus”, e ali a padres cristãos, a referência a portas para outros universos (os castelos voadores, as portas do inferno, a passagem dos mortos, veículos vários, licantropos e homens-animais), a figura da Baba Yaga como dúplice, nem “boa” nem “má” mas mediadora entre os mundos dos humanos e todos os outros domínios extraordinários a que ganham acesso através dela pelos actos mágicos, uma espécie de “benevolente” (como as Erínias), etc., tudo isso remete a essas raízes. Poder-se-ia ainda dizer que Wax Cross mais parece uma potencialidade da poesia em banda desenhada, suscitando mais impressões noctívagas do que certezas. Pormenores de jogos linguísticos (“a cabeça de esferovite de Deus saltou para fora da sua caixa de noz prateada e dourada”) recordam a “poesia” de Manouach, mas sempre lançando as raízes, textuais e imagéticas, com o escol do tal mundo folclórico indicado (lobos, mochos e morcegos, um demónio, o cocheiro da morte e bruxas, esqueletos e campesinas de garrafa de vodka na mão…). Havendo uma referência aos Cárpatos, poderíamos imaginar que este livro é uma espécie de travessia não só por todos os seus territórios nacionais e culturais, como por sendas heterocrónicas, psicogeográficas e outras veredas extraordinárias.

O ajuntamento entre a camada visual, deslumbrante, cheia, virtuosa, exuberante, e as simples histórias, irresolutas, não é de todo desequilibrada, e apenas sublinha a característica maravilhosa (no sentido preciso que esta palavra assume na crítica literária) de toda a trama. Já tivemos oportunidade de encontrar abordagens deslumbrantes em termos gráficos – como a obra de Brecht Evens ou de Craig Thompson – mas cujos propósitos narrativos são de um certo pretensiosismo e “rompem” esses veículos, e outros casos – como no de AudreySpiry – em que a absoluta despreocupação e linearidade da narrativa a tornam mais fluida, capaz. A nosso ver, os projectos destes dois livros de Tin Can Forest inscrevem-se nessa linha, onde uma certa leveza a nível da narrativa e da representação apenas fortalece a objectificação estética das imagens, seu propósito nítido. E essa estratégia, aliada à matéria representada, florestal, recordaria uma tradição que se estenderia de Rackham a Nancy Ekholm Burkert, passando pela banda desenhada de Hughes Micol e Kerascoët. Um fortíssimo trabalho de figuração (mais naturalista, mais estilizado, conforme os casos) plenamente integrado em cenários cheios, pormenorizados e matizados.

Todavia, há outra dimensão eventual. É que essa objectificação pode estar a ser revigorada por os autores – precisamente pela forma como “decoram” e “adensam” as imagens – poderem estar a seguir alguns caminhos da arte popular eslava, de bordados à pintura, talvez mesmo ícones e a magia (táltos) locais, oferecendo assim uma dimensão mágica a todo o projecto. Aliás, imaginamos mesmo que concatenem mais do que uma história, mais do que uma fórmula, para a criação destes textos compactos e intensos. As suas abordagens cromáticas, com linhas ténues delineado todo e qualquer objecto, e depois uma panóplia de cores judiciosamente densas mas marcadas, dá qualquer coisa de “lacado” a toda a substância visual (madeira, laca, marchetaria com madrepérola, bordados, são materiais que nos vêem à mente). 

A violência do que é tratado – doença, morte, demónios, rituais e curativos telúricos – não está nada próximo dos contos hodiernos para crianças urbanas e dessensibilizadas destas dimensões da vida humana, mas religam-se imediatamente ao fundo folclórico de que partem ou pelo qual são influenciados. Mas ao mesmo tempo recorda toda uma tradição literária, à la Pushkin, uma paródia séria, que importa recuperar. Há também uma preocupação clara, e até explícita através de vários mecanismos (um cólofon especial em Wax Cross, a própria matéria narrativa), com a ecologia. As florestas densas, de caminhos atapetados com vegetação rasteira, folhas outonais, cogumelos, os animais em liberdade e diálogo, e o “trânsito” entre os mundos – mais uma vez recordando as organizações cosmogónicas aparentadas aos xamanismos – faz pensar num mecanismo interdependente que se pretende preservar ou reactivar. As escolhas económicas de produção das publicações também são disso reveladoras. Há, portanto, uma dimensão pedagógica no acto. O nome do colectivo, aliás, é logo todo um programa.
Nota: Baba Yaga, de 2010, encontra-se na sua segunda edição pelo próprio colectivo, mas facilmente adquiríveis no seu site.

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