14 de setembro de 2012

Tarefas Infinitas. Exposição/Catálogo (F. C. Gulbenkian).

Não será surpreendente que, apesar de este ser um espaço que quase exclusivamente se dedica à leitura crítica e analítica da banda desenhada (e, por vezes, da ilustração e da animação), e que de quando em vez incursa por territórios contíguos – do desenho às artes do livro, das teias que associam o gesto do escritor ao do desenhador, ou as formas como a ilustração traduz ou diz, mais do que complementa -, encontre na exposição Tarefas Infinitas. Quando a arte e o livro se ilimitam (patente no Museu Gulbenkian entre 20 de Julho a 21 de Outubro deste ano, sendo uma co-organização do Museu com a Biblioteca de Arte) um momento de aprendizagem, reflexão e inflexão de muitas das questões que sempre atravessam as nossas abordagens. A exposição é comissariada por Paulo Pires do Vale, filósofo, investigador e dedicado a muitas das linhas de força que encontram nesta exposição a sua presença mais moldada: o livro, a arte, a tarefa a que ambos obrigam o pensamento, o espaço social que os comporta, as disciplinas que complicam. Para além do próprio gesto curatorial e a exposição em si, temos acesso a algumas das desdobragens das ideias nos textos do catálogo-companheiro, objecto belo em termos gerais, ainda que visualmente repetindo com precisão, sem grandes rupturas ou desvios produtivos, a exposição. As considerações que se seguem não são sistemáticas, mas nascem de uma resposta à disposição dos objectos, dos livros, e aos textos. E, sobretudo, à forma que tudo isso fabrica: a forma com que ficamos após a visita à exposição, o manuseamento dos livros disponibilizados na Biblioteca, a leitura dos textos do catálogo. (Mais) 

A primeira reacção face a Tarefas Infinitas é a da dúvida. Afinal, de que se trata? Uma exposição de livros de artista, como pareciam prometer as primeiras notícias sobre esta exposição? Uma resposta da parte da Gulbenkian, empregando a sua particular colecção de livros de artista e outros (mas utilizada de forma ténue - por exemplo, o magnífico, monumental e pejado de questões pertinentíssimas São Julião de Amadeo, que conhece uma edição recente pela própria Fundação, poderia ter servido de exemplo de interacção máxima - o folhear), face a gestos análogos ocorridos noutros palcos e contextos, dada a tendência de se falarem de livros associados às artes ou à atenção maior à materialidade do livro? Uma simples mostra, apesar dos empréstimos e das encomendas feitas para esta exposição? Uma exposição que coordenava as vontades de dois núcleos da Fundação, o Museu e a Biblioteca, onde negociariam um espaço comum de inquirição e investigação? Um gesto conceptual, que elege o livro como nódulo do olhar filosófico? A assunção de uma pergunta, que sendo simples e aparentemente banal na sua formulação, é um verdadeiro problema filosófico, no sentido em que não é tanto a resposta (impossível) o que mais interessa mas a sua colocação? Essa pergunta será o que é um livro? e – como veremos, algo constante – o que ele pode? Na verdade, se todas estas perguntas, coordenadas entre si, podem muito bem ser empregues como inícios descritivos desta exposição e respectivo catálogo, não nos parece que a resposta – ou o início dela, sob a forma de pensamento - seja satisfatória. Na verdade, Tarefas Infinitas surge-nos como uma questão nem sempre bem colocada, levando antes a equívocos e becos sem saída do que relançamentos de ideias. A dúvida que surge, portanto, não é metódica nem interpelativa, nem nos convida a reescrever noções anteriores, mas é uma dúvida que não oferece caminho à frente.

A ideia de Tarefas Infinitas é a confirmação de um espaço privilegiado para determinados objectos – por acaso, livros – que ganham um peso específico (social, económico, político) no contexto artístico. Tudo isso começa na cenografia, feita de plintos, vitrinas, isolamentos, níveis de lux reduzidos (necessários, como é natural, para obras em papel, mas que torna a galeria uma câmara apartada, sombria e ritual). A escolha judiciosa de abrir certos livros em páginas determinadas faz com que se vogue sempre em torno de um núcleo coeso. A inclusão de quadros flamengos onde se representam leitores, ou de filmes nos quais o acto de leitura e de descoberta do texto como passagem ou do livro como espaço habitável (Godard, Kentridge), ou de esculturas/instalações que têm o livro como nexo (Chafes, Fragateiro), permite porosidades interessantes, sem dúvida, mas que acabam por fazer regressar o peso à institucionalidade em torno do livro, mais do que à sua livre compulsão - num seu sentido não-neurótico, mas antes de algo tão natural quanto a respiração. Finalmente, e apesar de estarmos cientes que as escolhas são sempre momentâneas e que jamais pretendem ser absolutas e finais, e que também não podem ser confrontadas de uma maneira simplista com outra escolha, esta em particular parece subsumir todo o espaço do livro a duas disciplinas “nobres”: a arte visual (a esmagadora maioria dos livros de artista são de artistas cuja obra se consolida sobretudo noutras disciplinas) e a literatura (seja a poesia visual seja a prosa de Gonçalo M. Tavares). Não estão presentes artistas contemporâneos que trabalhem particularmente o livro enquanto veio central da sua obra (apenas para citar os poucos a que o lerbd tem dado atenção, veja-se Carla Filipe, Catarina Leitão, Mauro Cerqueira, Isabel Baraona e Tiago Baptista.

Se a sensibilidade, o gesto curatorial, a construção do discurso, é muito atenta às complicações das dobras (o próprio pli) que se criam com estes livros expostos, e a circunferência invisível que a sua agregação promete e projecta no virtual, se de facto há a consciência de que é nas brechas e nos intervalos que podem surgir as fulgurações dos encontros do inesperado, e as passagens para novas relações, há um delineamento que não parece estar consciente do fechamento que executa. No final da introdução do catálogo, lê-se que “redobramos o desejo de encontrar uma outra [dobra]: a da relação entre a Biblioteca e o Museu. Tornar a Biblioteca em Galeria, e a Galeria em Biblioteca. Já sem fronteiras definidas, em desdobramento” (pg. 18). Mas se os factores do tempo e da leitura, como veremos, não penetram a Galeria; o problema aqui, parece-nos, está no facto de que se cria apenas um circuito entre Biblioteca, Museu e Galeria, não sendo possível pensar numa outra configuração que estivesse aberta a outras noções, espaços e possibilidades (que poderiam ser, por hipótese, a Livraria, o Quiosque, a Sala de Aula, a Sala de Espera, a Oficina Gráfica, o Escritório, o Transporte Público, o Cartaz, etc.). Enfim, constrói-se (ou confirma-se) um circuito fechado, que já existia.

Se o “crítico” é aquilo que se distingue de uma posição empedernida, tal surgirá pelo exercício da razão face a um qualquer dogmatismo. Mas não será esse circuito fechado uma espécie de dogma em si mesmo? Não seria o olhar crítico aquele capaz de ir para além dessas fronteiras, franquear as portas, declará-las obsoletas e falsas, por mais estranho e perigoso que fosse esse território maior? Não há aqui nenhuma procura de desterritorializações nem da assunção de uma linguagem menor no interior da linguagem maior. Bem pelo contrário, todo o gesto é apenas a confirmação do território absoluto, digno, circunspecto do jardin clos do mundo da arte (e, eventualmente, das belles lettres). Qualquer inclusão e qualquer exclusão são sempre um gesto político, uma constituição discursiva, uma formação. Só que tampouco se notará aqui um movimento clínico, no seu sentido deleuziano, do método filosófico esquizofrénico, de “formação de uma desorganização”. Quer dizer, apenas se forma aquilo que já estava formado. Repitamos: confirma-se e conforma-se.

Não é que Paulo Pires do Vale não abra o seu discurso a essa possibilidade de expansão, integração, variação e negociação. Mas é sempre feito lateralmente ao discurso central, e sem desenvolvimento suficiente. Por exemplo, na página 201 lemos que “O livro transporta ambas [pares conceptuais como comum/extraordinário, banal/espectacular, etc.] com a mesma dignidade e destrona mesmo a pretensa superioridade daquilo que se considera habitualmente importante”. Isto é depois seguido por uma nota de rodapé: “E aqui percebemos uma diferença fundamental entre o livro ilustrado, de luxo ou de peintre, e o livro de artista – tal como surgirá nos anos 1960”. Esta afirmação parece demonstrar um entendimento democrático, livre e desempoeirado do livro em si, enquanto noção, mas a exposição não mostra objectos em que esse “banal” esteja (ainda) presente, ou em que o (que era) “comum” possa ser a matéria (pois as transformações históricas elevaram-nos a outro plano). E até mesmo os livros de artista pós-1960 que desgastaram a “exclusividade” dos objectos de luxo (citamos a mesma nota), como o livro de Ruscha, são hoje objectos raros, caros, exclusivos. Mesmo aqueles que parecem cumprir esse papel são desviados, sequestrados para a tal confirmação/conformação. A caça ao Snark, o livro de Carroll e de Holiday, encontra-se aberto na ilustração mais próxima da arte conceptual avant la lettre, como que apagando a forma não apenas complementar mas construtiva, de inscrição, de escrita, que as imagens do ilustrador trazem à história do famoso autor (como vários estudos o demonstram, entre os quais um artigo de John Tufail, o qual virá a ser publicado na Rei Rubro). A dimensão social e económica do Art world é portanto acentuada. Apesar de na própria Biblioteca terem sido disponibilizados alguns livros da colecção para manuseamento/consulta (algo descuidada, afirme-se), não há coincidência entre esses e os da exposição, apesar de alguns deles serem perfeitamente integráveis em ambos os espaços. É óbvio que não se esperaria deixar um livro de horas às mãos dos visitantes incautos, mas são poucos os livros - o Merda de Alexandre Estrela, por exemplo - que têm as mesmas condições físicas e de circulação em ambos os espaços. Há sobretudo diferenças. Tratar-se-ão de complementos? Um gesto adicional da parte da Biblioteca? Em todo o caso, reitera-se a leitura que fazemos do espaço circunscrito.

E se de facto havia espaço e orçamento para incluir objectos fora das colecções, ou até mesmo de empréstimos, porque não incluir outros livros que expandissem o conceito de livro até outros domínios? Se a visualização é fulcral, porque não incluir livros em Braille, ou até mesmo livros com ilustrações para cegos? Se a relação com a fotografia e a sequência levanta conceitos produtivos, não poderia ser uma revista de fotonovelas tão estimulante quanto um projecto de Marie-Françoise Plissart? E porque não livros ilustrados mesmo (a inclusão do livro Kô et Kô, de Vieira da Silva e Pierre Guéguen, e o de Carroll e Holiday, parecem ser as únicas escolhas “seguras” e “dignas”, que não colocariam o edifício social em perigo), banda desenhada, fanzines de toda a espécie, livros de escrita assémica, exercícios em que se compliquem os gestos literários pelo gesto do artista visual, como no caso de Eduardo Batarda (relegado para a mostra da Biblioteca) ou de Mattia Denisse? (é tentador ver uma citação directa ao livro deste artista, Logo depois da vírgula, na própria forma como o texto do comissário termina, na página 230). Se pensarmos no gesto democrático e pedagógico possível do livro (isto não é reduzi-lo a essa condição, mas é afirmar essa sua condição de possibilidade), não seria Paulo de Cantos um nome interessante e problematizante, que inflectiria as vetustas tradições internacionais de uma maneira curiosa? É verdade, como dissemos atrás, que não se pode criticar uma escolha contrapondo outra, sem mais, mas a questão aqui está em que o conjunto apresentado não coloca em perigo as noções de livro e de obra de arte, da sua circulação, da sua valorização sócio-económica (de uma classe profissional específica de objectos e de agentes no mundo).
“A linha que atravessa os livros é também o que procuramos tantas vezes dentro de um livro: um fio que o atravesse e lhe dê unidade – sentido – como um fio de Ariadne que nos permite a salvação? Mas não é pedir de mais (ou de menos, diria eu) aos livros? Não podem eles conduzir-nos a caminhos mais perigosos e estranhos: como tantos destes livros que aqui expomos, ele pode ser a exaltação de um sentido que ultrapassa a lógico” (pgs. 146-147). Este é o âmago do gesto, e promissor, sem dúvida, mas como já mencionámos o que sentimos no seu final não é uma entrada para esse perigo, mas antes uma domesticação, uma territorialização. Se a prosa, por associação a uma famosa frase de Saul Steinberg, é uma linha que passeia (e menos um organizativo e espartilhante fio de Ariadne), pelo contrário alguns dos elos entre livros e disciplinas e saberes, ou entre os livros em si, parecem forçados, ou então permitidos somente pela obrigação contratual e superficial em mencionar os objectos disponíveis e seleccionados, reduzindo a apresentação propriamente dita dos mesmos numa brevíssima oração (os casos da integração na ideia de arquitectura, assim como alguns projectos artísticos, parecem ser particularmente frágeis). A dimensão poética, para não dizer impressionista, dos textos, reforça essa ideia. Por vezes, ela é mesmo pedagogicamente circular: “[os livros] Transgridem os horizontes reconhecidos, e constituem um novo horizonte. E nunca únicos, mas múltiplos: o infinito que transportam, a tarefa infinita em que se inscrevem, negam a possibilidade de um livro absoluto – porque esse livro absoluto seria um fim, e o infinito é sem fim” (pg. 225). Talvez essa seja uma das razões pela qual o comissário leva algum do seu tempo, na introdução, a explorar o conceito de “ensaio”, mais do que penetrar imediatamente no território criado.

“O fragmento, como o ensaio, como o livro, transporta um desequilíbrio interno. Uma necessária pobreza” (pg. 14). Sim, mas também pode ser o espaço rápido para uma centelha do espírito, uma imagem do pensamento (W. Benjamin). E todo o gesto de Tarefas Infinitas parece antes optar pela fuga em frente constante. Corroborada pela inclusão de encartes, textos alheios, novas traduções. Na página 14, logo no início, lê-se, “Como fazer uma exposição em redor do livro? Falhando-a.” (itálico no original). Seja, pois a inclusão de falhas, de intervalos, de brechas, dá espaço sempre para respirar e permitir uma reflexão menos espartilhada. Todavia, há várias formas de falhar e a reflexão não pode estar desancorada ou abandonada num limbo demasiadamente extenso, cujos corpus nunca se estrutura na verdade. Nada disto tem a ver com um propósito pedagógico. Claro que há sempre livros que não se conhecem, informações novas, pormenores que completam uma imagem vaga. O que se esperaria era uma imagem de conjunto que se harmonizasse.
Pense-se no voo do papagaio de papel. As figuras que ele faz, a beleza do seu voo, a elegância das suas curvas, contravoltas, quedas e ascensões, não se explicam somente pela sua fragilidade e leveza no ar. É antes o facto de encontrar um ponto de ancoramento, uma tensão, entre o vento que o levanta e o cordel que o prende às mãos e à terra. Sem esse ancoramento, o papagaio libertar-se-ia e ou cairia ou fugiria. É necessário pelo menos um ponto assente à terra. Na situação presente, esse ponto gravitacional seria a contextualização histórica e geográfica das obras incluídas, contextualização que, por mais incerta e discutível que fosse (por exemplo, contestar a eleição de ser Twentysix Gasoline Stations de Ed Ruscha o gesto inaugural dos “livros de artista”), traria à consideração elementos suficientes para fazer compreender que qualquer história universal do livro, e o que ele pode ou não, é problemática. O seu estatuto, a sua natureza, até mesmo a sua ontologia, é mutável. Quando lemos “Sem tempo histórico específico nem grelha de leitura ideológica; sem saudosismos nem pretensões progressistas; sem uma linha narrativa historicista ou uma delimitação geográfica; sem limites de estilo ou género de classificações rígidas (o que é um livro ilustrado, um livro de artista, um livro-objecto…); encontramos aqui filmes, esculturas, instalações, pinturas a óleo, livros únicos e outros de produção industrial, artistas consagrados e outros desconhecidos (mesmo anónimos).” (pg. 18), apenas compreendemos uma evasão pelas sucessivas ausências. “Cada livro inscreve-se numa tradição”, parece prometer-se (pg. 148), mas elas não são visitadas. E apesar de se apontar a “palma de uma mão, que é a medida absoluta”, não será o corpo humano, materialidade “mais estranha de todas” (B. Highmore), também ele constructo histórico e sempre já subjectivado? Mesmo que de modo plural?

A filosofia não segue os mesmos princípios e organização de pensamento que a história, claro, e não é isso que se esperaria, uma história do livro ilustrada por uma mão-cheia de livros. O que se espera porém é que um conceito emergisse, e o que se encontra aqui são antes várias linhas vagas, mais impressionistas que vincadas, que permitem a agregação confusa do que é mostrado. Os livros são uma prática, acima de tudo, e, como tudo o que é humano, motivado. Não é que se desejasse uma pesquisa psicanalítica dessa motivação, pois com essa palavra pretendemos antes apontar ao facto dessa mesma prática ser situada culturalmente, ser contingente ao(s) seu(s) tempo(s) e lugar(es), estar ligada às suas histórias sociais. Tarefas Infinitas parece, contudo, ter eleito os princípios filosóficos antes, ou até mesmo apesar de, da selecção e organização dos objectos, de forma a que os primeiros se incorporem nos segundos, e não que os segundos revelassem os primeiros. Penso que seria exigível algum enquadramento que não é de todo providenciado.

Por exemplo, a comparação entre os gestos de Sol LeWitt e o “manual” Nova Escola, etc. de Manuel Andrade de Figueiredo (1722) é curiosa e poderia ser produtiva, mas sem qualquer análise, sem as estruturações dos elementos passíveis de leitura comum, não se compreenderão os elos que se desejam criar entre os gestos ritualísticos do artista norte-americano e os prescritivos do mestre caligráfico português. Um livro no pós-Renascimento estará mais preocupado com a representação que transporta do que com os afectos e sensações que um Livro de Horas, medieval, desencadeia, eventualmente permitindo-nos citar Foucault, de História da Sexualidade 1. A vontade de saber, distinguindo ars de scientia. A busca e/ou encontro de pesquisas malevitchianas avant la lettre no projecto “transdisciplinar” de Fludd também poderia ser pasto aos propósitos que o livro podem servir (o livro enquanto laboratório, alambique, sigilo mágico, câmara onírica ou visionária, etc.), mas é deixado à mente do leitor essa desdobragem.

É a falta destas contextualizações, destes ancoramentos, que sentimos falta para reforçarem a ideia do conceito de livro, e apenas vislumbramos pela parte da exposição uma confirmação social do espaço privilegiado do Museu/Galeria/Biblioteca e pela parte dos textos uma universalidade semi-velada.

Nos textos ainda, cita-se o poeta Edmond Jabès, quando este diz que “a realidade do livro está na leitura” (pg. 15). A exposição, porém, não convida à leitura, ao folhear: convida antes à ritualística reificação dos objectos inertes nos plintos do mundo institucional, no qual o uso está desde logo prescrito (senão cerceado) de forma estanque. Lembram a câmara de Eumnestes (lit. “Boa Memória”), do poema The Faërie Queene, de Spencer,  com os seus objectos espalhados mas inertes sem as ligações do pajem. Como escreve William N. West, “este objectos de memória são, a um só tempo, perfeitamente visíveis e totalmente incompreensíveis”. Quer dizer, eles não são eles-mesmos, passíveis de um amor incondicional, fetichista, irracional, controlador, típico do bibliómano, mas são reduzidos a marca de palco para os conceitos apresentados. Para citar directamente três instalações incluídas, os livros surgem aqui como cinzas de uma leitura impossível de repetir (Chafes), biblioteca de suicidas (Fragateiro) e texto escortanhado (Pimentão). De acordo com muitas leituras crítica do conceito de museu, este surge  aqui como mausoléu que arranca os objectos aos seus contextos originários, objectificando-os e fortalecendo a sua abstracização, isto é, enquanto pasto para a análise intelectual e não a vivência que permitiriam, o “caos de memórias” de que Benjamin fala. Como escreve Didier Maleuvre (Museum Memories), “Desprovido do seu conteúdo experiencial, os objectos do museu são meros veículos de  conhecimento morto, de uma contemplação alienada. O museu testemunha portanto a falha da modernidade em preservar o passado sem o ferir. Abstraído de qualquer contexto, despojado da história viva e envolto numa história académica, os artefactos estão no museu como ossos num ossuário”. Se bem que neste contexto não estejamos perante tão violenta imagem de um “conhecimento morto”, claro está, podendo fruir-se de associações novas, uma presença de livros que não deixa de ser pedagógica, surpreendente, e uma ordem determinada que pode ser vista em contraste com tantos outros gestos associados ao livro e à edição que se tem notado como tendência nos últimos tempos em Portugal (e que encontrará no futuro próximo novos desenvolvimentos), sublinha-se, de certa forma, pelo próprio desenho da exposição, essa “contemplação alienada”.

Quando, no texto do catálogo, logo a seguir à última parte citada, se pergunta “Como expor a leitura?”, a única resposta possível, parece-nos, é “Com o tempo!” Onde está ele, porém, em Tarefas Infinitas? Em 2011, a Oficina do Cego (mormente por iniciativa da artista Isabel Baraona [coordenada com uma activa e importante equipa, que oculatámos indevidamente, ver comentários]) organizou uma série de encontros e discussões públicas cujo nome era “O que um livro pode” (curiosamente, sendo frase banal, repetida várias vezes no texto de Pires do Vale). Essa foi uma forma de expor o tempo que os livros exigem: tempo de leitura, de discussão, de circulação, e até mesmo de fazer livros. Apesar do tremendo, quase absurdo, risco que se incorre aqui em estar a contrapor dois gestos tão distintos na sua natureza, e não esconderemos o nosso envolvimento pessoal nesses encontros, claro, fazemo-lo para sublinhar um entendimento em torno do Livro, quando, em Tarefas Infinitas, encontramos objectos inertes, esvaziados desses tempos.
Nota final: agradecimentos à Fundação Calouste Gulbenkian, pela oferta do catálogo. Imagens (inclusive aquelas utilizadas no vídeo) retiradas da web.

2 comentários:

Isabel Baraona disse...

Pedro, bom texto que aponta aspectos que espero poder discutir contigo brevemente. Queria apenas fazer uma pequena correcção: " O que um livro pode" foi inicialmente um ideia minha minha mas se existiu foi graças ao apoio e à troca de ideias com a Cláudia Dias (Oficina do Cego), o David Gueniot (que teve a ideia do mote) e Patricia Almeida (Ghost). Este ano, dia 8 e 9 de Dezembro teremos a 2ª edição de O que um livro pode... pode reunir pessoas, por-nos a pensar e a conversar!

Catarina Figueiredo Cardoso disse...

Pedro, parabéns pelo excelente texto e a análise crítica! A vida de uma exposição sente-se nas reacções que provoca, e é estimulante para os que nos interessamos por livros e por exposições constatar que uma exposição pode ser um lugar de debate sobre ela mesma e o seu objecto.