7 de dezembro de 2012

Children’s Picturebooks. The art of visual storytelling. Martin Salisbury e Morag Styles (Laurence King)

Este volume não tem como intenção fazer um contributo expansivo em relação aos vários estudos académicos, guias históricos, manuais técnicos já existentes nos mercados anglófonos, francófonos e outros, mas pretende sem dúvida surgir como uma espécie de balanço equilibrado desses mesmos discursos, uma espécie de volume introdutório, balizado e inteligente, sobretudo para um público britânico. A associação de um homem da prática, Salisbury, e uma académica, Styles (mas ambos também têm um papel no outro domínio), assegura que os melhores dos mundos estarão presentes nestas páginas: por um lado, uma visão crítica e atenta a todas as problematizações e frinchas que minam a possibilidade de um discurso que se pretenderia absoluto e transparente, e, por outro, uma estratificação e clareza na apresentação dos vários elementos passíveis de aprendizagem. (Mais) 

Como se sabe, na língua inglesa o termo picturebook é muito específico, nomeando aqueles objectos livrescos nos quais é a predominância da imagem - quer em termos físicos quer em termos sociais - a regra, formando-se assim uma subclasse da literatura infantil ou até da literatura ilustrada infantil (e que terá muitos elementos formais coincidentes com a banda desenhada, havendo mesmo exemplos de texto que vivem em ambos os territórios). Dessa forma, colocam-se de lado alguns nomes ou contributos para a arte da ilustração em termos gerais, mesmo no interior do campo social do “público infantil”, havendo por isso neste livro uma maior concentração numa forma propriamente dita, uma arte de composição, estruturação ou domínio dos vários elementos que compõem um livro ilustrado, tal como entendido por estes autores. Na verdade, é numa longa citação que fazem da estudiosa Barbara Bader, do seu clássico American Picturebooks from Noah‘s Ark to the Beast Within (1976), que se concentram os vários princípios abordados: “Um livro ilustrado [picturebook] é texto, ilustrações, design total; um objecto de manufactura e um produto comercial; um documento social, cultural e histórico. E, acima de tudo, uma experiência para a criança. Enquanto forma artística, ela vive da interdependência das imagens e palavras, na apresentação simultânea de duas páginas lado-a-lado, e no drama do virar da página” (apud 75). Independentemente desta tentativa de definição prestar-se a problemas inerentes a abordagens formais, com uma breve menção à sua recepção social (na verdade, esta mesma citação é discutida por Bart Beaty no seu Comics versus Art, que discutiremos em breve), a questão importante é sublinhar que este tipo de objectos faz agregar toda uma série de linhas analisáveis, interpretáveis e passíveis de ensino, ou seja como “uma junção de conceito, trabalho artístico, design e produção” (50), na qual os trabalhos “conceptual, criativo e técnico” (55) se vêm juntar. São esses os elementos explorados ao longo dos sete capítulos de Children‘s Picturebooks, que se se distribuem pelos territórios da história, da sua dimensão expressiva ou artística, da relação directa e social com as crianças, das relações entre texto e imagem (mesmo que não entendida como uma relação “essencial” ou definitiva, é sempre uma recorrente dimensão nestas discussões),  da esfera do que é ou não apropriado a esse público infantil, das técnicas materiais e da indústria editorial.

Como se compreenderá, não sendo o propósito deste livro fazer uma história do formato, ou género, ou meio (dependendo da perspectiva), mesmo que compreensiva, o foco histórico é sobretudo virado para exemplos britânicos, e norte-americanos, o que permitirá o seu uso como complementar de outras bibliografias. Não obstante, não deixa de fazer menção a certos artistas, escolas, ou fases em países que criaram “momentos-chave” neste desenvolvimento, como é os casos de Edy Legrand ou Jean de Brunhoff. E em todas as outras partes do livro, a diversidade das fontes e origens é impressionante (mereceria uma discussão aturada e um estudo mais cuidadoso perceber se isso se deve igualmente ao desenvolvimento de novas formas de trabalhar os livros ilustradas noutras tradições, como em Portugal, fazendo aproximar os campos nacionais, ou se isso se deve antes a novos mecanismos de circulação, desde a internet a Festivais e concursos).
Não deixa de ser algo interessante que, tal como ocorre em muitos livros de divulgação da história “enlatada” da banda desenhada, os autores incluam exemplos retirados de objectos da História da Arte, como as pinturas rupestres e a coluna de Trajano, para salientar a presença das narrativas visuais de forma mais ou menos descontínua na história ocidental, ou outras.

Acima de tudo, porém, o que Children’s picturebooks acentua é o desenvolvimento histórico e técnico, que permite toda a espécie de desvios e experimentações, de artes do livro que se associam a narrativas ou ideias e às imagens vívidas que as veiculam. Nesse sentido, os livros ilustrados infantis são uma espécie particular de um relacionamento muito próprio entre os leitores e os livros, uma relação que não é alheia a sensações estéticas e de fruição cultural e intelectual, tal como prevista noutra longa citação, desta feita de Maurizio Corraini: “Trabalhos manuseados! Uma possibilidade explosiva que significa poderem ser tocados e levados como propriedade; é uma maneira de entrar em contacto directo com a arte. Esta é uma maneira de começar bons hábitos, sobretudo entre crianças, o que as levará a considerar a arte como algo que as pode afectar directamente, e não, como tantas vezes sucede, como um mundo distante que apenas podem visitar de quando em vez” (50). Uma forma de relacionamento afectivo previsto naquela expressão citada de Bader, sobre o “drama do virar da página”.

Os últimos capítulos, que se estendem por várias técnicas de trabalho mostrando exemplos retirados de uma panóplia de países e artistas - Bernardo Carvalho é o único caso profissional português incluído - e os vários conselhos ou passos associados à apresentação e prossecução de um projecto editorial, são algo mais esquemáticos e céleres, mas não deixam de ser abordagens sumárias de algum interesse. Essas breves abordagens são conducentes para que se entenda o que é necessário para cumprir a “pesquisa visual, planeamento sequencial, intervenção editorial e as diferenças e expectativas culturais que podem implicar um impacto no sucesso e na qualidade de publicável de um livro ilustrado” (59). Ou seja, ir simplesmente além da “ideia gira” que muitas vezes pode surgir: mormente nas mãos de escritores que, angariando fama de outros circuitos e a sua facilidade de contacto com editores, asseguram a publicação dos seus projectos, mesmo que não tomem em atenção esses elementos, e, acima de tudo, essa responsabilidade.

O mesmo poderia ser dito dos capítulos que discutem os temas que usualmente levantam maior celeuma quando abordados neste tipo de literatura, como a violência, a morte, o sexo, o amor, a tristeza, a tortura, etc., e os estudos sobre as aptidões educativas destes livros e a forma como as crianças lhes respondem em termos das relações texto-imagem, cor, linguagem corporal, metáforas visuais, interpretação do mundo, afectos, etc. Isto é, existindo bastante bibliografia, mais ou menos complexa, mais ou menos compreensiva, sobre todo e qualquer desses pontos, as súmulas apresentadas são excelentes pontos de iniciação. A própria Morag Styles divulga aqui algum do seu trabalho de campo, com entrevistas a crianças leitoras, que já havia publicado anteriormente e que caminham para uma futura monografia académica. Repetidamente - como por exemplo nas palavras citadas de Edward Bawden e de Saul Steinberg - aponta-se sempre a ideia de que desenhar é uma forma de pensar no papel, pelo que o alerta a todas estas linhas de fuga, que se podem desenvolver, está prevista e assegurada.

Um dos aspectos curiosos da estruturação deste livro é que, graças ao trabalho de Salisbury enquanto professor em escolas de ensino superior de ilustração, ele tem acesso não só aos exercícios como às produções e processos de quem ainda se encontra numa fase de aprendizagem e experimentação. Revelar essas mesmas experiências pode-se tornar significativo no estudo de todos estes temas. Assim sendo, em quase todos os capítulos apresentam-se “casos de estudo” que iluminam os temas discutidos, desdobrando-se em casos profissionais (livros publicados, usualmente títulos que angariaram alguma recepção crítica) e casos de estudantes. Há mesmo o caso de uma estudante portuguesa em Bristol, Madalena Moniz [ver secção de comentários]. A inclusão destes projectos ainda em formação não só são excelentes pontos de partida para entender os mecanismos que presidem à criação de um livro - pois não pertencendo a um autor desde logo consolidado, permitem que não haja um filtro social impeditivo da sua crítica ou desmontagem pedagógica, o que muitas vezes ocorre na recepção crítica destes livros, sobretudo entre nós, onde estes discursos ainda estão subdesenvolvidos - como são igualmente uma forma de obrigar a quem está envolvido na docência destes campos a tornar o mais transparente possível os instrumentos de fabrico, de interpretação, de resposta, eliminando o usual discurso impressionista que não leva aos melhores resultados.

Aliás, o acesso a todos estes instrumentos, digamos, prévios a um livro propriamente dito - os esboços, os apontamentos, os diários gráficos - abre-se a “um mundo privado de exploração de coisas, pessoas, ideias, e lugares e as ocasionais listas. Isto precede todas as outras abordagens aplicadas [num sentido técnico] a criação de livros ilustrados, aquelas que podem ser ensinadas de uma forma mais tangível, tal como ritmo visual e sequencial, e relações entre texto e imagem” (58). Daí que a inclusão de materiais como os esboços de Beatrice Alemagna para o seu Um leão em Paris seja inestimável, ainda que simples.

Children’s picturebooks segue os dois caminhos do que é ensinável: técnicas de reprodução, de representação, de estruturação, sempre com exemplos magníficos, por um lado - ainda que não de um modo tão sistemático e teórico como Lire l’album, de Sophie Van Der Linden -, e a própria emergência de uma noção de família fortalecida com esses mesmos exemplos, a de uma tradição variadíssima, de uma exigência pensante, de experiências corajosas em termos temáticos e artísticos, e que esperançosamente contribuirão para um entendimento de que há uma hierarquia possível de gosto neste campo. Ainda que seja sobretudo nos tempos modernos que encontramos livros ilustrados infantis… pós-modernos (há mesmo um livro dedicado a eles, editado por L. R. Sipe e S. Pantaleo), nos quais ocorrem “temas exigentes, estilos artísticos sofisticados, ideias complexas e noções implicadas de um leitor enquanto alguém que aprecia esses desafios e abraça esse progresso” (75), na verdade uma leitura aturada poderá tirar lições diferenciadas de muitos livros de outros momentos históricos ou paragens. Os minúsculos mas incisivos ensaios interpretativos relativos a cada título citado sublinha-lhe sempre as qualidades principais, e poderá servir de instrumentário para novas, outras leituras.

No fim de contas, o que interessa é fazer uma escolha acertada. Se nos preocupamos com a forma como as nossas crianças se alimentam, se protegem, se vestem, ou aprendem a falar, escrever e contar, qual a razão que nos leva a negligenciar a “dieta” cultural a que terão acesso, sobretudo no que diz respeito à sua fruição de livros, os quais ainda podem ser um veículo privilegiado de se relacionarem com o mundo, uma vez que de uma forma particular obrigam a pensarmos com eles, num silêncio especial, e assim a pensarmos por nós mesmos? Em suma, assumir a responsabilidade de que se falava acima, exacerbada nestes objectos? A “compreensão cognitiva, estética e emocional” (79) é uma constante nos livros ilustrados infantis, ou pelo menos deveria sê-lo.

A dimensão pragmática inerente a estes livros, prevista naquela noção do desenho enquanto pensamento, toca nas raias de algo de muito profundo, uma espécie de domínio ao qual temos acesso com estes livros numa fase precoce das vidas. Eles demonstram que “a linha directa de contacto entre o cérebro, a mão e o papel ainda tem um poder mágico” (137), mesmo num contexto de hiper-mediatização permanente.

Este volume, portanto, de uma maneira sumária mas eficaz, revela parte dessa magia, explica-a para a tornar mais densa, e volta a distribuí-la.
Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio do livro.

7 comentários:

topedro disse...

"...é uma constante nos livros ilustrados infantis, ou pelo menos devê-lo-ia ser."
ou "deveria sê-lo"?
o "o" é de "constante"...

Pedro Moura disse...

Correctíssimo, obrigado pelo reparo!
A propósito... estou atrasado noutras coisas, mas em breve...
Pedro

Catarina Sobral disse...

Bem, já agora... é Madalena, e não Margarida Moniz. Já ilustrou «Sílvio, domador de caracóis».

Ab.
Catarina

Pedro Moura disse...

Cara Catarina,
Obrigado pela correcção (são sempre bem-vindas, uma vez que há sempre distracções).
E que coincidência! Imagine qual o livro sobre o qual estou a escrever agora... Achimpo-a a adivinhar.
:)
Obrigado!
Pedro Moura

Catarina Sobral disse...

=) hummm, estou cá com uma desconfiança...

Carla Oliveira disse...

E, coincidência das coincidências, o projecto da Madalena Moniz que aparece no livro, e aqui se mostra, vai ser editado no próximo ano na colecção Orfeu Mini. ACHIMPANTE!

Pedro Moura disse...

Achimpa-se! Poder crer. Cá o espero.