17 de junho de 2013

Le décalage. Marc-Antoine Mathieu (Delcourt)

Nascido dos conhecidos trocadilhos do autor, a personagem na “capa” (ver adiante) do livro aponta desde logo o mote de Le décalage: “on ne contrôle pas un lit ivre”; literalmente “não se pode controlar uma cama bêbada”, mas onde as duas últimas palavras conduzem à ideia de “livro”. A cama trata-se do inusitado veículo de, a um só tempo, entrada do protagonista na história, saída do seu universo diegético para um nível supra-diegético, referência metafórica e intertextual do “mundo da banda desenhada” e, claro, piscadela ao poema de Rimbaud, Le bateau ivre, e as suas paisagens feéricas.
Como já havíamos escrito a propósito do seu livro dedicado ao Louvre, Mathieu tem em Acquefaques uma espécie de guia psicopompo que nos conduz pelos intricados mecanismos internos do próprio livro. E tal como nesse outro caso, mas de uma forma particularmente intensa nesta série, cada livro não é mais do que uma mise en abyme desses mesmos mecanismos. De uma forma redutora, poderemos dizer que os álbuns anteriores desta série se centravam noutras dimensões da obra de banda desenhada. L’Origine sobre a ontologia da banda  desenhada, a forma organizada a que um objecto livro obriga, às passagens a que convida, mesmo as inesperadas; La Qu…  revisitava a ideia do processo de criação mas para colocar o protagonista em busca da quadricromia; Le Processus desdobrava o personagem em dois, para colocá-lo “fora” da sua dimensão ou nível de representação, para descobrir outros níveis ainda de estruturação da banda desenhada; Le début de la fin/La fin du début é um livro reversível que apresenta duas narrativas numa espécie de palíndromo visual invertido, inclusive a nível da distribuição do preto e branco; La 2,333e dimension centrava-se sobretudo na ideia do ponto de fuga, da perspectiva, na fabricação de “mundos ficcionais” de banda desenhada e na [ilusão da] terceira dimensão.
Cada um destes livros são bem mais do que isso, claro. São como que um exercício de reflexão metalinguística sobre a banda desenhada através de uma ficção que imita, em parte, alguns dos típicos elementos do mercado a que pertence - o franco-belga -, desde a assunção de uma série, a existência de um herói recorrente representado da mesma maneira, o tirar partido das guardas, etc. Mas também elevam essa reflexão do meio a  referências quer directas a outros autores - de Schuiten a Trondheim - quer indirectas: o nome de Julius Corentin remete desde logo a referências mais ou menos óbvias (cada nome e o acrónimo), o de família é uma espécie de palíndromo fonético de “Kafka”, o pressuposto indicado pelo sub-título (“prisioneiro dos sonhos”) e pelas primeiras acções (ele acorda sempre porque caiu da cama de um sonho estranho) remete a Nemo, etc. A série, mas poderíamos dizer toda a obra de Mathieu, de facto, electrifica a dinamização da estrutura que conhecemos como “banda desenhada” para dela criar histórias “ao quadrado”, como diria Borges.
Em cada um desses livros, o autor usa técnicas relativamente incomuns que mexem mesmo com a materialidade do livro. Não são propriamente inéditas, e emprega-as de modo que não se esgotam num uso somente espectacular ou de prazer háptico/visual, lúdico, mas tornam-se integradas e significantes na construção da diegese, do significado da história: vinhetas que são um buraco, a passagem gradual às quatro cores, uso de efeitos 3D, uma espiral de papel que liga uma folha à seguinte, fotografia dos materiais originais de criação da própria banda desenhada, duas capas e inversão do livro… Em muitos aspectos, a obra de Mathieu, e esta colecção em particular, é uma prova cabal que no campo da banda desenhada a camada dita paratextual é menos relativizável e mais significante do que noutros domínios mais literários (sobretudo o romance “clássico” ou “normativo”). Porém, desenganem-se os leitores que julgarem estar perante experiências densas como aquelas propostas ora pelos exercícios de salão - mas divertidos, consequentes, teoricamente ricos - da Oubapo ora dos projectos artísticos e profundos de plataformas tais como a Frémok - que obrigam sempre a uma distância emocional e entrega crítica particularmente forte. Bem pelo contrário, Mathieu tem uma capacidade de empregar todos estes desvios experimentais no seio de uma estrutura naturalizante, de onde emerge uma história, uma intriga, uma acção empolgante e até humorada, e uma construção clara de um universo ficcional e das relações entre as personagens.
No caso presente, a descrição física aponta desde logo à circularidade da narrativa (como em 3 secondes, mas numa estruturação totalmente diversa). O álbum tem um aspecto material normal: capa dura de cartão com impressão brilhante, divisão do miolo em quatro cadernos cosidos, impressão off-set. Mas aquilo que se encontra na(s) capa(s) não são os elementos usualmente reservados para uma capa. A capa, digamos, “verdadeira”, assim como o cólofon, a lista de livros já publicados, a descrição da história, e até mesmo o código de barras, estão no interior. Na “capa” (física ou material) encontra-se parte da história. As folhas correspondentes às páginas 41-42, 43-44 e 45-46 encontram-se rasgadas na sua quase totalidade, mas dos fragmentos “sobreviventes”, a sua combinação consequente permite leituras múltiplas (“obrigando”, portanto, as personagens a repetirem gestos, posições, expressões e partes dos diálogos). Aliado à “história”, entendemos que o que se passa é o “desfasamento” - a décalage - entre a forma física do livro e a organização da história.
Mais uma vez, J.-C. Acquefaques é “cuspido para fora” da narrativa ao início, e tudo isso vai colocar todas as restantes personagens não apenas à busca dele como a tecerem inúmeras ideias e reflexões sobre a natureza de uma “história sem herói” e das formas de organizar narrativas. A busca pelo protagonista torna-se mesmo a ocasião para construir diálogos em torno de trocadilhos e diálogos absurdos dignos de Beckett, e o convite à sua leitura repetida, circular, potencialmente infinita, levam a ter de escavar cada frase como sendo uma fórmula para entender, de forma universal, o projecto da ficção, ou da arte.

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