9 de julho de 2013

Artifice. Alex Woolfson e Winona Nelson (Yaoi 911)

Por várias razões, não sendo menores a ignorância e a falta de tempo, nunca abordámos bandas desenhadas publicadas online ou webcomics (não são sinónimos, mas falta-nos a energia para as distinções pertinentes). Quer dizer, em rigor já se leram algumas séries de tiras que tiveram a sua primeira vida num site mas que depois seriam coleccionadas num volume em papel, como foi o caso da Perry Bible Fellowship. E, na verdade, também Artifice foi coligido num volume em papel recentemente.
Como o próprio site do autor indica, esta(s) criação(ões) de Alex Woolfson integra(m)-se no género de banda desenhada de temática “homossexual”, em que as personagens masculinas exploram emoções, o amor ou aventuras sexuais entre si. Associado a um género de origem japonesa mas com contornos bem complexos em termos sociais e de produção, o yaoi é usualmente criado por mulheres e para um público feminino (campo de que Moto Hagio, de que falaremos muito em breve, é um dos apogeus), e muitas vezes tem cenas sexualmente explícitas, por vezes até tórridas, mas sem se abandonar à mais básica das titilantes pornografias, que terá os seus acmes, como Tom of Finland. No entanto, a sua adopção por públicos internacionais leva a variações na sua produção, como é o caso deste escritor, e seguramente que apela a públicos cada vez mais alargados, sem preconceitos ou inscrições sociais e sexuais confinadas.
Apesar desse descritor geral, Artifice, em todo o caso, integra-se na ficção científica, ao passo que outra série, The Young Protectors, ainda em curso, usa elementos das aventuras de super-heróis (os outros títulos disponíveis no site são histórias curtas variadas).

Deacon é uma espécie de andróide, cuja missão é abater todos os habitantes de uma colónia, aparentemente revoltosos contra um poder central. No entanto, depois da sua equipa ser destruída, ele acaba por não a cumprir totalmente e envolve-se com o último sobrevivente da colónia, o jovem humano Jeff, homossexual (numa sociedade que identifica os homossexuais in utero e os destrói). A situação desperta uma “curiosidade” no andróide que estimula discussões muito pertinentes, na história mas também no impacto que terá junto aos leitores, sobre a profunda questão da origem da homossexualidade, se exclusivamente genética, se cultural, ou se uma mescla entre as duas esferas. Mais um ponto de vitória na própria obra.
A história inicia-se na verdade já após todos os acontecimentos centrais da diegese, e é em flashback, com Deacon a falar a uma terapeuta, que descobrimos o que sucedeu na colónia. O quadro sócio-político e aspectos específicos de Artifice nunca são explorados cabalmente, mas apenas sugeridos, fazendo o leitor imaginar uma realidade coesa, que de tão familiar não precisa de explicações, mas também com que se foque de imediato no cerne da questão: a exploração sexual de Deacon e de Jeff. Há um equilíbrio muito bem encontrado entre cenas pejadas de diálogo, de exposição, e as breves cenas de acção, já para não falar da cena de descoberta física mútua. Os autores tiram muito partido do silêncio, cenas em que os protagonistas (ambos!) coram, etc., para demonstrarem a subtil dança entre lentidão e saltos que pautam a aproximação sexual de uma pessoa por outra, quando é para ambos uma novidade a vários níveis, sendo a virgindade um grande factor. Não existem cenas explícitas, nem sequer nudez, remetendo assim todas as cenas, mesmo aquelas em que os dois se encontram na cama post-coitus, para um ambiente romântico, ainda que intenso, em que temos mais acesso aos modos de descoberta emocional e pessoal entre os dois do que as possíveis ginásticas sexuais. O erotismo, como sempre, apenas ganha com essa não-revelação.
A estrutura da história é suficientemente simples: introdução, cena de acção inicial, desenvolvimento central (cenas de diálogo entre Deacon e a terapeuta e entre Deacon e Jeff), cena de acção final, complicação da crise ou terceiro acto, e final surpreendente. O facto de se empregar uma “fórmula estrutural”, contudo, não implica qualquer detrimento em relação à construção das personagens e à forma como elas interagem e assim criam o sumo de Artifice. Além disso, também nada disto significa que não haja elementos suficientes para alimentar os gostos da ficção científica (a discussão de Deacon sobre a falta de padronização nos pêlos do peito de Jeff acaba por se tornar uma diferença entre humanos e andróides cómica), e como sempre é salutar encontrar histórias que empregam géneros e até mesmo fórmulas mas em enquadramentos afastados da hegemonia sexual e política da esmagadora maioria dos textos “com sucesso” (nesse mesmo sentido, Gaylord Phoenix tinha uma variação considerável).

The Young Protectors parte do pressuposto que os leitores estarão familiarizados com as convenções dos super-heróis para dar início logo de imediato à variação a que se permite. Se bem que nos dias que correm a homossexualidade não seja propriamente uma novidade, e não seja empregue nem como factor de choque nem como bandeira de pseudo-diversidade no interior das indústrias mainstream (recordemo-nos que a cada passo em frente se dão dois ou três para trás), não basta que existam Midnighters e Apollos ou casamentos para que a representação passe a ser feita de modo descomplexado e verdadeiramente humano. Haverá sempre um factor de espectacularidade nessas “revelações”. No caso de uma obra escrita por um autor gay, ainda que não torne nada automaticamente superior (em termos morais e/ou políticos), ainda assim conjectura-se que haverá assim um tratamento mais realista e genuíno, o que é o caso. E, acima de tudo, divertido: aliás, a primeira cena, com um super-vilão a exigir de um jovem herói um beijo, acaba por atravessar um território cómico quase adolescente, ou pelo menos por aquela adolescência a que cada novo primeiro beijo obriga.
Curiosamente, uma vez que os autores não trabalham dentro dos espartilhos de uma editora, apesar de usarem todas as ideias clássicas do género, mostram variações nada displicentes: um modus operandi bastante curioso, ponderado, coordenado, inteligente e realista, não obstante as roupas coloridas, da parte dos heróis jovens; uma ambiguidade moral e de comportamento entre as várias personagens; formas de colaboração inusitadas, etc. De resto, Woolfson parece brincar de propósito com todas as imagens feitas – o riso sinistro do vilão, a promessa de um confronto físico – para depois as desviar para a descoberta emocional entre as personagens principais, sendo essa a matéria central novamente. O humor não deixa de estar presente, e até o meta-humor, com referências ao próprio trabalho de Woolfson nas histórias, ou um interlúdio que discute slash-fiction sobre as personagens que estamos a ler, num género que estamos a ler.

Em comparação com outros artistas de mangá yaoi, inclusive japoneses, o estilo da artista de Artifice, Winona Nelson, é límpido e competente, ainda que sem grandes rasgos de originalidade ou ímpeto bruto. Há um grande respeito pela anatomia, pelas expressões, a coloração é legível, mas é algo… artificial, lembrando mesmo uma plasticidade quase inexpressiva, também patente nos Luna Brothers ou em Fred Béltran. É bem possível que parte disso se deva ao tipo de tintagem e coloração, que lhe dá uma cobertura "plastificada". Algumas cenas são algo melodramáticas, sobretudo as tiradas da terapeuta, que possivelmente pareceria bem na fase de planificação da história, mas que acaba por não ter o efeito desejado, e escorrega na paródia de si mesmo. As cenas de intimidade crescente entre Deacon e Jeff são porém mais bem conseguidas, ainda que explorem alguns dos clichés visuais da mangá deste género, com ligeiras simplificações dos rostos, o uso de “emanatas” expressivos, etc. e os grandes planos, que obrigam a maior modelação e detalhe dos rostos, faz Nelson titubear a sua abordagem quasi-linha clara. Todavia, a competência da artista, aliada à qualidade de escrita de Woolfson, que explora bem a psicologia (mesmo artificial) das personagens, e os seus diálogos que constroem as personagens, torna esta(s) série(s) num objecto de leitura leve mas recompensadora. Já Adam DeKraker é sofrível, mas de resto não é muito diferente de 90% dos autores que trabalham no interior dos house styles da Marvel, DC e outras editoras que lhes seguem as pisadas em termos estéticos. Ambos trabalham com paginações relativamente convencionais, mas a permissibilidade da internet leva a que se espraiem cenas (quer de diálogos quer de acção) por um número muito alargado de páginas, em claro contraste com os ritmos espartilhados dos comic book regular.
E é precisamente essa economia que permite a Woolfson e seus colaboradores a criar histórias as quais, se numa hipotética sinopse esgotariam toda a simples e delimitada diegese, não apresentaria de maneira suficiente o modo como as personagens se constroem mutuamente, e aos mundos que as encerram.
De novo, o link directo.

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