1 de outubro de 2013

Ordinário e Tobogã. Rafael Sica (Companhia das Letras/Cachalote)

Fazendo parte de uma nova geração de autores brasileiros que trabalhará num território que poderá eventualmente ser chamado de “alternativo”, Rafael Sica tem conquistado ainda assim alguma atenção e até sucesso, se tivermos em consideração alguns dos seus prémios e mesmo a “recompensa” (?) em ver os seus trabalhos editados em plataformas tais como a Folha de São Paulo, ou por editoras tais como a Companhia das Letras. No entanto, nada disso implica que Sica abandone as suas raízes e percurso particular, sobretudo no que diz respeito ao seu temerário interesse por narrativas não-naturais, e que buscam uma espécie de fantasma do absurdo (no seu sentido do género literário) na existência quotidiana e urbana.
Ordinário foi originalmente uma série de tiras na internet, existindo ainda hoje, no site do autor, uma colecção parcial, com trabalhos desde 2011, mas gradualmente com mais presenças até aos nossos dias. A leitura que fazemos delas bebe tanto do site como desta edição em livro.
A tira de banda desenhada nasceu, como se sabe, na imprensa diária, sobretudo norte-americana, e atravessa uma história muito complexa, que tanto envolve questões de design e cultura visual, tecnologias existentes e empregues na imprensa e até mesmo a personalidade dos editores, que escolhiam quais as tiras a serem incluídas e quais sobreviviam às mudanças de gostos do público. Paulatinamente, porém, as páginas magníficas do fim do século XIX e início do XX, ou mesmo os suplementos exclusivos, dariam lugar a espaços cada vez mais confinados, até chegarmos à “fórmula” constrita das quatro vinhetas na horizontal (nalguns casos, variações verticais ou em quadrado), ainda hoje continuada, apesar das décadas de 1990 e 2000 terem visto ainda mais reduzido o espaço nos jornais para este tipo de linguagem. Seja como for, mesmo nessa sua nova ainda que pobre existência, as tiras de banda desenhada exercem sempre um estranho fascínio sobre os seus leitores, uma espécie de familiaridade confortável, muito difícil de substituir. Basta pensar na experiência de “Calvin & Hobbes” no Público. É estranho, contudo, que ainda que esse seja talvez o único conteúdo temático que todos os leitores de determinado jornal lêem, havendo menos consenso no preenchimento do Sodoku, a leitura da coluna de opinião, do editorial, ou das secções desportiva ou musical, ela é raramente o objecto de discussões públicas, ou de análise. Talvez precisamente pela sua fórmula e familiaridade, a verdade é que a tira, mais do que uma intervenção curta mas efectiva no imaginário dos leitores, um choque (cultural, social, político) acaba por ser tornar mais um instrumento de alienação, de mero entretenimento, de contribuidor para um sorriso fugaz que ameniza, tão ao de leve, tão passageiro, o peso da vida diária.
Rafael Sica, porém, cria um estranho mecanismo. As tiras obrigam os leitores aos mesmos movimentos físicos (das mãos, dos olhos, da cognição), mas iludem em relação ao humor expectável, e até mesmo a uma ideia de sentido linear, nítido, familiar. Bem pelo contrário, elas têm uma forma familiar que nos, não convidam, mas arrastam subitamente para um território estranho (“estranho familiar” mesmo, unheimlich). É como se Sica pretendesse, através desse formato complacente, acordar-nos em relação a algo que nunca acaba por coalescer. Pois os “sentidos” ou o “fito” de Ordinário não são totalmente programáticos. Se o espaço geral, a área de trabalho, é sempre idêntica, já as opções de Sica são sempre diversas: existem tiras com apenas uma vinheta, uma paisagem única, ou duas vinhetas, ou quatro ou cinco, ou mais, usualmente simétricas e regulares, outras vezes buscando organizações mais fragmentadas e complexas, até mesmo concêntricas. E se existem casos em que pode haver paisagens naturais, campestres, à beira-mar, a esmagadora maioria delas tem lugar numa urbe contemporânea que tem características quase universais. E se a esmagadora maioria das personagens são humanas, algumas delas são zoomóficas ou então possuem elementos fantásticos e fantasiosos que as parecem arrancar a um qualquer género familiar da literatura, cinema ou banda desenhada, mas para as abandonar nestas paisagens algo melancólicas de uma cidade contemporânea. Muitas das histórias parecem ser confinadas a pequeníssimos cantos (por vezes, lembramo-nos de “Here”, de Richard McGuire), criando-se jogos de olhares complexos. Veja-se a tira que abre este parágrafo: que procura a personagem? Quererá tentar ver-se a si mesma a partir do ponto de vista que imagina existir acima dela? Ou esperava, depois da subida, reencontrar-se em baixo? Ou será que simplesmente, nesse movimento de perspectivas, queria permitir um varrimento ocular do espaço, que é dado igualmente aos leitores? Ou tratar-se-á de algo mais complicado ainda, não-natural, presente somente na superfície de papel da tira, de termos a mesma personagem, desdobrada, olhando-se a si mesma para além ou através daquele confinado espaço?
Não há qualquer comicidade, pelo menos banal, nestes trabalhos. Em muitos casos é até difícil destrinçar se existe um propósito narrativo, já que o que importa é a emergência do absurdo desta quantidade de situações (algumas das quais são impossíveis, outra banais, outras aparentemente familiares mas raptadas para desenlaces inesperados). Recordando algumas experiências de Pascal Mathey, em que a coordenação de imagens singulares e sem qualquer ligação directa aparente, é como se essa própria desassociação construísse um sustento suficiente para um outro tipo de significados.
Se podemos compreender - no site, pelo menos - a ideia de algumas “séries”, como aquelas abstractas ou uma breve sequência de tiras que têm um cão como protagonista (e desta feita, fazendo recordar, por sua vez, e em mais do que uma dimensão, as tiras de David Lynch, The Angriest dog in the World), e mesmo que encontremos pequenos temas recorrentes - personagens que procuram desaparecer nos interstícios dos espaços, escondendo-se sob colchões, acampando nas esquinas, caindo sobre capachos, procurando mesmo devir objectos e espaços - Sica não está preocupado em criar uma intensidade constante, ou sequer uma ideia de unidade bem pelo contrário, a multiplicidade e a mutação são o ritmo mais próprio da criação do seu trabalho.
E se as personagens parecem isoladas, mesmo quando em companhia com outras (sombras, duplos, monstros), é raro que encontrem momentos de felicidade e resolução, o que não significa que de vez em quando não haja episódios “felizes”. Além disso, ainda que nunca de forma dogmática, e ecoando outros trabalhos de Sica, há uma ligeira reflexão sobre o estado social do Brasil e do mundo, como se estas tiras absurdas fossem capazes de dar conta de um discurso de pequenas resistências, que nos alertam para situações usualmente fora dos focos mais habituais: a pobreza, a solidão urbana, o abuso do meio ambiente. Quanto um homem queima o seu próprio carro, ou outro busca as suas próprias pernas na rua, outro ainda desaparece no “lago” da estrada em frente a casa, quando vemos mulheres procurando companhias “masculinas” em objectos alternativos, quando uma passadeira afunila e faz desaparecer os transeuntes, ou se retratam várias famílias presos à inércia ou a gestos melancólicos, não podemos deixar de os ler num seu sentido social. O mesmo ocorre em relação à quantidade de personagens que parecem brincar com os seus traços definidores, como se se representassem as várias máscaras sociais, de todos os dias, através de elementos gráficos familiares das BD/HQ (aqui, o filtro de Fábio Zimbres - que assina o posfácio do livro - sobre a Disney é mesmo uma influência, seguramente). Um guarani parece contemplar o horizonte, em uníssono com a natureza (o sol levanta-se ou põe-se, ou é apenas as vagas que observa?). No final, acende um cigarro. É esta uma contradição do seu comportamento, ou apenas das nossas expectativas em relação à sua “experiência genuína”? Quem é que é enganado neste caso? É necessário um engano, não será somente uma representação do mais banal dos prazeres? Porquê negá-lo àquele homem em particular?
A colecção “1000-1” sempre foi um projecto coordenado por Rafael Coutinho, pelo seu selo editorial Cachalote, mas se num momento foi assegurado em termos de publishing pela Barba Negra, da Leya, com a desaparição dessa casa, ela transitou para o novo projecto do autor, a Narval Comix. Seja como for, a colecção mantém o seu propósito original, a de providenciar com um caderno simples (à la Lx Comix, Patte de Mouche, etc.) um espaço singular para os autores explorarem com total liberdade os vários caminhos expressivos, formais e narrativos, ou de desvios experimentais sobre as expectativas desses elementos, auscultando portanto cantos (quer no sentido topológico quer musical) ainda por conquistar neste território. Tobogã é o gesto de Sica neste quadro.
Na verdade, Sica cria uma “história linear” no seu sentido mais literal. Em primeiro lugar, as páginas apenas existem coordenadas em livro pelo acidente necessário do veículo comercializado, quando na verdade ele pede para ser lido, como um todo, enquanto uma espécie de pintura em rolo, em contínuo. Numa primeira abordagem, trata-se de uma longa e ininterrupta paisagem, acompanhando desde a queda da chuva que alimenta um rio, a travessia deste de vários locais e o seu fim numa cloaca. Este rio, porém, serpeia por entre uma paisagem que pode ser lida de duas formas, ora evolutiva ora socialmente. Em primeiro lugar, temos toda uma série de intervenções sobre a paisagem, que pode ser vista como uma imagem sólida, sob a forma de pequenas vinhetas flutuantes ocupadas por personagens, animais e objectos, e recordando as intervenções infográficas ou simbólicas de um Kevin Huizenga ou Jochen Gerner nas suas composições. A “ordem” que se estabelece entre essas imagens dá a entender, numa primeira fase, uma história da evolução das espécies: verme, sapo, rato, macaco, bebé humano, células, cristais, cadeias de ADN. Mas numa segunda fase, possivelmente com a entrada do humano, ela toma uma inflexão, e podemos ler antes antepassados humanos, mutantes, homem civilizado, pragas, controlos científicos da natureza, intervenções químicas e radioactivas, droga e loucura. A ideia de circularidade é sublinhada por surgir, no fim, o mesmo verme que havia aberto a “narrativa”, ainda que enrolado na direcção contrária. Haverá um recomeço ou será simplesmente uma imagem especular, simétrica mas que assegura o término absoluto? Além disso, a leitura dessas imagens soltas não pode ser feita sem se coordenar precisamente com as alterações do próprio espaço ou fundo, como se fosse um comentário de que nada na vida dos homens é desligado da sua existência social e o grau de intervenção sobre o meio ambiente: nas primeiras páginas vemos uma natureza prístina, intocada, mas rapidamente começam a surgir sinais da presença humana: ossos (de animais comidos, de seres humanos por enterrar?), barracas rudimentares, que se vão complexificando e diversificando nas suas funções, até surgirem pontes, esgotos, papagaios de papel, armazenamento de águas, centrais eléctricas, e finalmente uma densa paisagem urbana, que rapidamente dá lugar a bairros degradados e baldios ocupados com os dejectos dessa mesma civilização. Ainda que o seu conjunto pudesse ser lido como uma paisagem-objecto, onde o tempo não imporia qualquer causalidade ou avanço, a verdade é que o formato do livro, o acto de leitura a que se impõe, torna o elemento temporal imperativo na sua fruição.
O trabalho de Sica parece apostar sobretudo em termos de promessas goradas, não de uma forma gratuita ou falha, mas antes como criação de convites convencionais à entrada do leitor em territórios inesperados.
Nota final: agradecimentos a Rafael Sica, pelo envio de versões dos seus livros em pdf (dos quais utilizámos as imagens). Informamos ainda que alguma da arte original destes livros estará presente no FIBDA deste ano.

1 comentário:

andré lemos disse...

Gosto disto! Quero ver de perto!