7 de fevereiro de 2014

A Kick in the Eye. AAVV (auto-edição)

Este projecto nasceu da vontade de Tim Gaze, de quem já havíamos falado a propósito do seu 100 Scenes, mas vem juntar um conjunto de outros autores, da poesia visual, narrativa experimental, escrita assémica ou outros territórios contíguos, criando-se uma pequena constelação que contribuiu para um “texto” colectivo e colaborativo. Esses autores são, para além de Gaze, Rosaire Appel, Tony Burhouse, Marco Giovenale, Gareth A Hopkins, Satu Kaikkonen, Gary J Shipley, Christopher Skinner, Lin Tarczynski, Orchid Tierney, Sergio Uzal e Nico Vassilakis (que deverão reconhecer como um dos editores de The Last Vispo Anthology). (Mais) 

A Kick in the Eye vem juntar dois fios condutores de algumas pesquisas relativamente modernas e que têm conhecido maior fortuna nos últimos tempos. Por um lado, a escrita assémica, por outro, a banda desenhada abstracta. Para todos os efeitos, poder-se-á dizer que existe neste livro a presença de imagens e texto. Mas tal como a escrita assémica pode acompanhar imagens icónicas, concretas e reconhecíveis, ou imagens abstractas podem ser ancoradas por palavras legíveis e interpretáveis num qualquer grau de simplicidade e acessibilidade (existindo exemplos de ambos os “encontros”), que pode ocorrer quando se cruza uma matéria “verbal” ilegível ou cuja semiose não é de todo coesa e codificada e uma matéria “visual” que não estabelece correspondências claras com as coisas do mundo?

Estas experiências não são feitas nem num vácuo nem de uma forma gratuita (mesmo que o aparente junto aos não-iniciados). Bem pelo contrário, todos estes cultores são pessoas bem conhecedoras de uma história particular, e vivíssima, dos sistemas de escrita, dos estranhos desvios, das linguagens não-decifradas (do Linear A ao manuscrito Voynich), das criações de caligrafia livre (de Zhang Xu a Michaux a Ana Hatherly), enfim, dos movimentos gestuais que voltam a tecer as profundas e antigas relações gráficas, de “marca” (graphein) entre a feitura de imagens e da escrita, procurando aquilo que têm em comum e de sobreposição. Combinando uma ressonância  que vem desde os nossos tempos pré-verbais, quer do ponto de vista da história civilizacional e até biológica humana quer do ponto de vista do desenvolvimento de cada indivíduo, com uma hipotética fusão dos actos de escrita e visualidade, misturando o que não se sabe dos sistemas de escrita do passado com o que não se sabe dos sistemas de escrita do futuro, e procurando que as imagens se associem a uma continuidade de um informe promissor, A Kick in the Eye poderá ser um livro que falará antes a uma zona recuada do nosso cérebro mais do que às zonas iluminadas da racionalidade.

O projecto foi feito através de um intenso e intricado processo de troca de correspondência entre os autores, em que os diálogos eram feitos no interior das próprias páginas (simplifiquemos, nessa palavra contendo-se a ideia do texto e imagem), à  medida que as iam fazendo entre si. Sendo cada um destes autores não apenas, naturalmente, pessoas diferentes, mas igualmente cultivando abordagens muito diversas nas suas disciplinas variadas - alguns usam manipulação digital, ao passo que outros pincel e tinta, uns experimentam sistemas de escrita assémica enquanto que outros são poetas mais tradicionais, alguns têm experiência de criar bandas desenhadas experimentas, ao passo que outros são artistas visuais com experiências mais comuns - A Kick in the Eye não deixa de ser uma amálgama muito diferenciada entre si, possivelmente levando a alguns graus de intensidade e de disponibilidade diferentes, num mesmo leitor, face a este ou aquele contributo. No entanto, algumas das páginas, ou “material” que a compõe, foi reutilizado por outro artista numa nova página. É notório esse processo nesta dupla página, em que a imagem de Tim Gaze (à esquerda) foi empregue (como “fundo”?, “ponto de partida”?, “elemento diurno”?, “mote”?) na de Sergio Uzal (à direita) (tudo é identificável por um índice no final do volume).

Uma vez que nem as imagens nem as escritas aqui presentes são identificáveis em si, mas o cérebro humano insiste no reconhecimento de padrões e figuras reconhecíveis, a nossa exposição a cada página poderá levar-nos a elaborar complexos processos de interpretação, múltiplos mesmo, que não terão qualquer conclusão, mas que tirarão prazer dessa mesma multiplicidade constante. O facto dos autores usarem elementos dos seus colegas, ou eles mesmos procurarem um qualquer tipo de variação sobre os seus métodos de criação, fortalece essa multiplicidade. Por exemplo, Lin Tarczynski cria uma escrita que se assemelha fisicamente a pequenos fios de massa em curvas nervosas, e a sua recorrência poderá levar-nos a querer encontrar formas idênticas, ritmos internos, “sentidos”. Já Gary J. Shipley (uma das imagens dele é usada na capa) parece usar materiais mais sujos, talvez grafite, talvez tintas, criando texturas mais orgânicas e “reais”, salientando uma dimensão material que não está totalmente presente nos outros autores. A forma como ele integra elementos de outros artistas como “moldura” ou “partes”, e o modo como as suas texturas cinzas surgem aqui e ali nas páginas dos outros - de resto, um processo que atravessa todo o volume - faz pensar numa complexa composição musical, um tipo de moteto visual, em que cada voz se mantém distinta, no seu próprio idioma e “letras”, mas que vai salientar-se momentaneamente noutro local, sublinhar antes uma palavra de outra linha de desenvolvimento, etc.

Há autores que utilizam apenas um signo assémico isolado de outro autor, outros utilizam padrões de um autor como “textura” ou “pormenor” das suas novas construções, outros ainda enclausuram nas suas estruturas elementos alheios, ora “protegendo-os” da adversidade das outras formas estranhas - é algo difícil evitar metáforas biológicas - ora isolando-as na tentativa de um sublinhado, de um sentido. Alguns autores criam a ideia de molduras, ou vinhetas, quase aproximando de uma ideia mais normalizada de banda desenhada. Lin Tarczynski, que tem uma cartoon strip assémica intitulada Geranium Lake Properties, contribui sobremaneira com esse tipo de ortogonia irregular. As lições de Thierry Groensteen (e outros semiólogos) sobre o papel da moldura - quer isolando um sentido, quer sublinhando-o, quer tornando-o de facto uma entidade legível enquanto entidade, etc. - têm aqui um papel preponderante, mesmo que essas estruturas não se mantenham. Além disso, e apesar da leitura de A Kick in the Eye também aceitar uma leitura não-normalizada, não-protocolar (aleatória, folheando para trás e diante, ou utilizando o índice final para seguir cada autor isoladamente), existem outros modos subtis de criar “unidades” de leitura, “capítulos” até, em todo o corpo do texto. Orchid Tierney, por exemplo, apresenta uma sequência final, de páginas negras, em que o digital parece fazer estilhaçar e espalhar linhas de luminosidade a partir de círculos, onde a escrita assémica dos outros artistas se encontra, de certa forma, “protegida”, encontrando-se ali, no final, uma progressão que vai reduzindo e “acalmando” a “narrativa”.

A sua leitura repetida, cuidada, metódica, é obrigatória, mas recompensará os seus leitores na abertura, ora subtil ora súbita, de um qualquer sentido, que não sendo transmissível verbalmente, sê-lo-á por um, no sentido etimológico, entusiasmo.
Nota: Agradecimentos a Tim Gaze, pelo envio do livro.Imagens colhidas no site dos editores.

1 comentário:

andré lemos disse...

chamou-me à atenção este livro...hmmm...