3 de julho de 2014

Tiras do Baralho. André Oliveira e Pedro Carvalho (El Pep).

Este livro terá algumas afinidades, mesmo que longínquas, com os projectos da Oubapo, no sentido em que, menos do que tecer uma narrativa ou desdobrar um conceito de uma forma interna, se lança um desafio em responder a uma série de estritas regras estruturais e depois se tem de cumprir o exercício até ao fim. Além disso, as tiras procuram seguir igualmente as regras internas e clássicas da organização do humor nesse formato – cena, acção, clímax, remate -, se bem que pela sua disposição vertical até se aproxima mais da sua variante japonesa, a yonkoma. (Mais) 

O livro reúne a produção dos dois autores de uma série de tiras humorísticas que são tipicamente elaboradas segundo a ideia de tema e variação. E por isso os autores até providenciam, em primeiríssimo lugar, uma tira-modelo (um pouco como Matt Madden expõe as “regras do jogo” no início de 99 Ways to Tell a Story) que explica a tal fórmula: uma tira de quatro vinhetas (organizadas verticalmente) em que duas personagens principais, duplas ou variações de um mesmo papel, executam uma tarefa qualquer para a qual não estão talhados de forma intrínseca. O título é uma construção frásica recorrente (“2 personagens a fazer qualquer coisa”), e uma outra personagem faz um comentário preparatório e outro após a punchline.

Encontraremos um casal de vikings irascíveis tentando fazer terapia de casal. Mochos tentando superar-se um ao outro num concurso de piscar os olhos. Gnomos de jardim tentando escalar o Evereste. Vampiros, abortos, esqueletos, samurais, minotauros, polvos, toupeiras, e muito mais, todos tentando sempre alguma acção que jamais conseguirão cumprir (com excepção dos ninjas, claro, sempre excelsos nas suas missões). E à medida que eles vão tentando, os leitores vão atravessando cada história, consumindo as tiras e procurando compreender o humor.

Tiras do Baralho exerce aquele tipo de fascínio do “mau humor que é bom”. Isto é, conscientes da dificuldade que é criar um humor verdadeiramente eficiente e bem construído, os autores exploram todas as possibilidades de desarmarem os leitores providenciando desde logo toda a distância irónica e desconstrução do estranho humor no próprio processo de o ofertar. É raro que uma anedota, mesmo quando é apresentada como “isto não tem piada”, ganhe algum tipo de graça pela sua falta de graça, mas André Oliveira e Pedro Carvalho conseguem instilar alguma graça (de graciosidade), e por isso humor, nestas suas breves rábulas desprovidas de humor directo. Não é a piada em si, é o processo que vale.

André Oliveira tem aqui um breve gesto que expande, uma vez mais, a sua vontade e conquista em experimentar vários géneros, formatos e estratégias de escrita. Pedro Carvalho tem um traço que pertencerá a uma alargada família, na qual encontraremos desde Jim Mahfood a algum Jhonen Vazquez, família de figuras altamente estilizadas, contornos negros e interiores espaçados. Ao contrário de outros trabalhos mais narrativos do artista (na Zona, entre os quais um outro argumento de Oliveira), ele procura aqui uma abordagem mais célere, em que os primeiros esboços são finalizados a tinta e recebem uma sumária cor cinzenta, suficiente para tornar sólida a ideia. É menos importante a elegância dos quadros ou a completude das imagens do que a eficiência em prender a ideia.

Até se poderia dizer que a expressividade das personagens é excessiva ao ponto do paroxismo, o que aumenta a comicidade das cenas. O grau de estilização do artista confere um ar sólido às figuras, e sempre com um ar mais dinâmico – por contraste a um Philip Bond, que se tem um desenho mais elegante também é mais perro. Apenas nos momentos em que tenta desenhar rostos que possam ser reconhecíveis na realidade (Hawkings, Obama) é que mostra algumas fragilidades, mas no interior da sua economia é de somenos. Tudo é bem oleado e empregue no objectivo final, que este humor. Estapafúrdio, é certo, mas humor.

O formato do livro também tenta escapar de alguma forma às fórmulas de sempre, mas resta esperar se se tratará de uma boa opção. A encadernação em argolas funciona sempre no mundo dos livros (por oposição à de “cadernos”, “apontamentos”, ou quaisquer documentos de trabalho) se se pretende explorar uma qualquer dimensão lúdica. Usualmente, temos encontrado esta forma de agregar as folhas em livros de lâminas recombináveis (os “mix-and-match books”), ou em objectos que de uma maneira ou outra mimam os calendários, integrando esse aspecto na narrativa, mas no caso presente parece que a associação é mais fraca. No entanto, remetendo para o jogo interno e até mesmo o título (“baralho”), poderíamos imaginar a possibilidade de recombinar a matéria interna, em que os mochos que não piscam entrariam em diálogo com os epilépticos, ou os ninjas se digladiariam com os polvos… Talvez uma publicação em baralho, mesmo, remetesse melhor a essa ideia. 

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