23 de agosto de 2014

The Portent, Ashes. Peter Bergting (Dark Horse)

A leitura e recepção do livro anterior de Bergting, Domovoi, foi feita com algumas expectativas e cumprida também na ignorância deste segundo livro. Se tivéssemos lido os dois livros e apenas depois escrevêssemos sobre eles, é certo que a estrutura dos nossos textos seria bem diferente. Pois se um livro esconde outro, como os comboios, quase sempre, e repetimos esta ideia, a leitura de um leva a que a leitura de outro seja executada de forma distinta. Tendo em conta a ordem da sua produção, e a sua leitura, todavia, o que ocorre em relação a The Portent é uma espécie de desilusão. (Mais) 

O autor persegue uma constelação temática de grande proximidade, e que encontra um território bem consolidado na banda desenhada contemporânea, norte-americana e europeia. Voltamos a ter uma protagonista feminina, neste caso Lin, uma espécie de guerreira mágica, que combate demónios num plano de existência alternativo ao mundo “real”, e que regressa passado um longo hiato paradoxal de tempo, para descobrir que o mundo de que partira está profundamente alterado, e que lhe cabe a ela tentar repor o equilíbrio original. Se se reduzisse The Portent a um esquema de episódios ou partes, à la narratemas de Propp, seria quase idêntico a Domovoi: situação inicial, passagem de mundos paralelos, reunião de coadjuvantes, desafios sucessivos, falsos aliados, combate final, vitória, preparação para novo desafio.

Isto não quer dizer que este respeito por fórmulas narrativas ou mesmo alguma previsibilidade leve a uma necessária falta de qualidade, ou que seja um problema em termos críticos. Bem pelo contrário, a fortuna de um autor ou autora que opte por um género determinado (isto é, reconhecido como tal) reside na forma como ele ou ela sabiamente volta a baralhar os seus elementos centrais, os mistura com outras fontes, provoca pequenos mas curiosos ou mesmo surpreendentes desvios, o eleva a um grau inovador, os coloca em crise, etc. É essa mestria e processo de des/estabilidade que torna uns autores “originais” (se se quiser empregar essa palavra de um modo algo superficial e fraco, como é corrente) e outros “formulaicos”. Infelizmente, estamos em crer que o Bergting de The Portent pertencerá à segunda categoria.

Em relação ao título anterior, porém, em muitos aspectos há uma prestação inferior. A figuração parece mais apressada, o que leva a grandes flutuações ou mesmo falta de coerência na continuidade das personagens (o que é um problema na banda desenhada deste género). Em termos de dinamismo de composição de páginas, gestão dos planos e focalizações, tudo parece mais constrito, sem grande assertividade ou definição. As próprias cores, ainda que continuem naquela forma decidida de criar ambientes diferenciados, episódios temporais distintos, e apontamentos de brilho e destaque pontuais e significativos, não tem o mesmo tipo de elegância tranquila de Domovoi. E há claramente menos diálogos, o que pode debilitar as forças principais de The Portent, que veremos de seguida.

Estas residem, acima de tudo, a nível da intriga. Contudo, a própria narrativa sofre de certa forma com o excesso de ideias e de “world-building”. O autor apresenta-nos quatro páginas iniciais que servem logo à partida de introdução, prólogo ou premissa. Através de cenas que depois nos apercebemos pertencerem a uma analepse, e na presença de toda uma série de legendas na primeira pessoa, chegamos como que depois de uma imensa saga, rapidamente expressa de forma nítida. É como se, por um lado, o autor compreendesse bem todos os ingredientes desse tipo de narrativa (já exploradas em Domovoi, de certa forma), mas em vez de a colocar no centro do livro, a apresentasse sumariamente de forma concentrada para explorar antes quais as consequências ou preço a pagar por essa aventura. Deslocando, então, por outro lado, a atenção em relação ao ponto nevrálgico desse tipo de narrativas (usualmente, um conflito maximal entre as duas forças opostas).

Porém, esse desvio é somente deslocado ligeiramente, para a “próxima” etapa de uma ventura maior. Lin, chegada ao seu mundo, apercebe-se de que este está dividido entre três clãs de magos, e vê-se tentada a tomar partido entre as partes litigantes. Além disso, existem ainda vários problemas por resolver associados às duas raízes da sua formação e poder: o da bruxa Kaspara, que a formara nas artes mágicas negras, e o do paladino Alkuin, que a treinara nas artes marciais. Entre essas duas forças ainda se encontrará Milo, um outro guerreiro que perdera a vida para salvar a de Lin, e que é também o objecto dos afectos perdidos da protagonista. Todas estas personagens estabelecem uma configuração geométrica complexa de interrelações que terão um papel preponderante na história, instigado pelo regresso de Lin. Sem revelar em demasia a trama, bastar-nos-á indicar que o final do livro é na verdade um ponto de preparação para a nova próxima etapa. Ou seja, no cômputo final, podíamos imaginar que The Portent, Ashes seria como que o volume intermédio de uma possível trilogia, mas cujos primeiro e terceiro volumes seriam apenas projecções fantasmáticas do segundo, único real.

Isso em si mesmo é desde logo uma opção extremamente curiosa, produtiva e espoletadora em termos imaginativos – na óptica da suposta “participação” do leitor. E tal como no caso de Domovoi, portanto, apercebemo-nos de que Bergting está mais preocupado com as consequências emocionais e a construção psicológica das personagens na interacção umas com as outras do que propriamente num encadeamento de eventos e acções. Um rápido contraste com a estrutura narrativa da série recente Baltimore. The Witch of Harju, escrito por Mike Mignola e Christopher Golden, para nos apercebemos que, sob uma outra direcção de intriga, Bergting emprega os seus instrumentos visuais de modo bem diferente.

O problema está – ou assim o julgamos – no facto das personagens não se consolidarem de forma suficiente, e quando se entregam aos momentos de maior embate emocional entre si, ainda o leitor está a tentar compreendê-las. E as formas de exposição explícita, através das legendas na primeira pessoa ou em tiradas directas, em vez de contribuir para um esclarecimento, acaba por surgir antes como um excesso de informação que não se agarra à superfície dos elementos da história, e as coisas surgem como que desagregadas.

E as próprias cenas de acção (na economia já usual do autor?) não procuram nem a espectacularidade mais costumeira nem ocupam os pontos fulcrais narrativos do costume. Acabam mais por surgir como pontuais “Worf effect” do que necessários à intriga, e menos ainda consequentes na construção da personalidade das personagens. Será este um caso de falta de intervenção editorial mais eficaz?

The Portent, Ashes seria um livro a inscrever na mesma classe que Domovoi, se bem que este segundo seja algo mais “negro” no seu tom (e também na construção do mundo, que parece viver somente entre o crepúsculo e a noite, sem madrugadas ou sol a pino). Menos ancorado no mundo real, para depois criar um desvio mágico, mas tendo lugar totalmente num mundo maravilhoso – mesmo que exista um mundo dos mortos e dos demónios e outro dos vivos - ele acaba por cair numa série de elementos-feitos algo sobre-expostos: a existência de clãs, guerreiros decalcados de toda uma cultura visual (distorcida, claro está, reificada) japonesa (vejam-se os chapéus de verga dos cavaleiros), a existência de um palacete-pousada quase emprestado de Mizayaki, os deuses anciãos de Lovecraft-por-via-de-Mignola, etc. A meio-caminho, então, entre a literatura para um público mais jovem e obras mais sofisticadas do género, mas sem conseguir ganhar terreno e raízes suficientemente fortes num desses campos.
Nota final: foram empregues, novamente, imagens de ficheiros digitais. 

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