15 de outubro de 2014

Snow. Dieter Vdo (Bries)

De quando em vez surgem livros que aparentam em todos os aspectos serem livros infantis, não o sendo, ou enveredam por pequenos caminhos que parecem afastar-se desse território mais ou menos normalizado. Todavia, isso não impede que ele não seja sequestrado para esse tipo e leitura. (Mais) 

Este é um álbum sem texto, de uma história linear, desenhada pelo artista Dieter Van der Ougstraete, que assina como “Vdo”, o qual pode ser integrado em toda uma tendência contemporânea de pintura, de grandes dimensões e a óleo, isto é, com os instrumentos clássicos e tradicionais da pintura académica, mas empregando assuntos e abordagens derivados da cultura popular, sem quaisquer entraves das origens desses objectos referenciais. É mesmo esse cruzamento, talvez não assim tão inesperado, que compõe as forças da sua abordagem. Neste aspecto, Vdo tem grandes afinidades com um artista como Georg “Atak” Barber.  

Se bem que existam histórias paralelas, em banda desenhada, com as mesmas personagens, até mesmo ao ponto de as lermos como versões paralelas, este livro pode ser lido de modo isolado. E, acima de tudo, na verdade, ele é quase mais um exercício de criação de imagens do que uma tentativa em narrar uma história.

Da narrativa, há pouco a dizer. Um pequeno boneco de neve, náufrago não se sabe bem de onde, dá à costa de uma ilha tropical, e atravessa-lhe as paisagens, cruzando-se com as mais diversas personagens, adversas ou excessivamente amistosas, todas elas empecilhos ao seu regresso. A travessia dessas paisagens não é mais que uma desculpa para o autor se abandonar à criação de cenas pejadas de personagens, muitas das quais decalcadas, ou homenageando, outras tantas famosas de desenhos animados ou banda desenhada (Beavis & Butthead, a abelha Maia, Petzi, os Estrumpfes, etc.), mas que nunca se consolidam propriamente numa geometria actancial que leve a pensar numa intriga propriamente dita. Os mecanismos são de uma causalidade imediata, e apenas mecanismos para o avanço do protagonista.

Abstraindo-nos do facto do autor ser belga, flamengo, não nos deixa de surpreender porém que algumas das composições, sobretudo as duplas páginas, recordem gravuras específicas debuxadas por P. Brughel (“Grandes peixes que comem pequenos peixes” e “Cozinha gorda”, para ser preciso). O autor segue um esquema cromático vividíssimo, que tem causas técnicas que lhe pertencem, possivelmente por empregar tintas acrílicas, ou pelo menos uma complexa e múltipla aplicação de tons e cores fortes, mas que não deixam também de recordar – não as cores submissas e subtis, atmosféricas, daquele mestre da pintura mundial – a glória da ilustração infantil do século XIX que era proposta através da cromolitografia. Num pequeno texto sobre livros infantis, que coleccionava, Walter Benjamin tece uma pequena oposição entre a fantasia e a “energia criativa”, reservando o génio da primeira aos livros coloridos das Märchen.  De certa maneira, aquilo que Benjamin parece dizer é que os livros infantis deste tipo, ou desta natureza, não participariam do mesmo tipo de intensidade estética do que, seja, a literatura ou a música, sobretudo aquelas obras que tentam ou conseguem expandir os próprios modos de linguagem nos quais trabalham. Mas o que se pretende apontar é tão-simplesmente uma estruturação diferente dos elementos conducentes a esse prazer final da leitura. E a fantasia não pode ser descurada de forma alguma como um dos pontos de acesso aos grandes estímulos mútuos da imaginação.

E a relação entre fantasia e imaginação é aqui tentada através de metamorfoses individuais de certas personagens, as mudanças constantes de espaços que poderíamos chamar de “ecossistemas”, cada um com especificidades próprias, e várias cenas violentas (combates, aprisionamentos, salvamentos, uns comendo-se aos outros, etc.) que são também sinal de outras transformações mais radicais. Os corpos de todas as personagens vivem assim no extremo da sua maleabilidade e finitude física, tornando mais premente o seu trânsito e relações.

O autor utiliza várias técnicas de composição das imagens, ocupando ora spreads, ora imagens de página inteira, ora organizando esta em várias vinhetas, mais próximas de estruturas típicas da banda desenhada ou imagens mais isoladas e flutuando em fundos de grandes expansões brancas. Sempre destacando-se a abordagem material pictórica para dar viva a estas criaturas gráficas e poderosamente icónicas. Fuga terrífica, aventuras macabras e final feliz. Nada mais necessário.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. 

Sem comentários: