17 de junho de 2015

Calhabéus & Papa-Migas. Susana Vilela e Nuno Neves (Serrote)

Declaração de interesses: ver texto anterior.

Depois de alguns anos a produzirem uma variedade de objectos gráficos, sobretudo “cadernos” com papéis ilustrados, padronizados ou estilizados de maneira a tornar até a próprioa ideia de anotar qualquer coisa num novo plano de intervenção e invenção gráfica, e que foram construindo a sua fama, a editora ou plataforma Serrote deu um passo definitivo para o campo da ficção ilustrada, sobretudo aliada à literatura infanto-juvenil. Uma aventura de Laurinha e Sulivão parecem prometer-se como uma série de livros, apesar de apenas terem sido lançados dois livros até à data (de certa forma, há algumas estratégias similares à Bíblia de Lôá), mas a relação entre um e outro é menos de consequência narrativa e de coerência linear do que de uma construção temática que poderá ir, aos poucos, contribuindo para uma ideia de enciclopédia. (Mais) 

Por um lado, poder-se-ia dizer que cada um dos títulos é tão-somente a história das férias de Verão dos dois protagonistas, Laurinha, a irmã mais velha, e Sulivão, o mais pequeno, nas terras dos avós, longe da cidade em que habitam todo o ano. No entanto, se a ideia cinética de “aventura” é levada a cabo da forma mais literal e acabada possível, isso não significa que estejamos perante histórias capazes de ser reduzidas somente aos seus elementos narrativos.
Nos últimos anos temos vindo a encontrar certos projectos que elevaram a ideia de enciclopédia, de vocabulário, dicionário, ou qualquer outro instrumento de pedagogia, mais ou menos dedicada a uma área específica, a objectos de uma beleza rara, tão cuidados como volumes de intenção poética. São os casos dos actividários da Pato Lógico (Mar, Teatro), por exemplo, ou o também recente Lá fora, da Planeta Tangerina. Guias e volumes dedicados à aprendizagem, mas onde ao didactismo é retirada a gravidade da sapiência superior e do moralismo, e incutido um grande grau de humor, imediaticidade e, como é o caso presente, a ficção.

Os dois livros apresentam a ideia das tais férias no campo dos dois irmãos. No primeiro caso, Calhabéus, Laurinha e Sulivão passam as férias na casa de pedra da avó paterna, lá para Trás-os-Montes; no segundo, Papa-Migas, ficam antes com os avós maternos (sendo este avô irlandês), algures no Alentejo ou serra algarvia. Esta exactidão local, ou melhor, a falta dela, não é de forma alguma um desejo de universalizar ou mitificar esses espaços, mas é abrir à possibilidade de transformar o país inteiro numa espécie de território aberto às deambulações dos irmãos. Pois quer num caso quer no outro, o que ocorre é que Laurinha e Sulivão têm uma qualquer missão que os leva a cumprir um passeio. Em Calhabéus, vão dar um passeio com o burro da avó, em Papa-Migas, têm de procurar o animal de estimação dos avós maternos. Todavia, esses passeios, que se de um ponto de vista preso à narrativa imediata, é “ali à volta”, na verdade fá-los atravessar Portugal inteiro, e é essa dimensão que transforma cada livro numa espécie de guia livre.

Calhabéus é uma colecção de pedras, ora naturais, ora esculpidas ora ainda alteradas ou dispostas pelo homem. O passeio de uma tarde dos irmãos, que começa na terra ao norte do país, levá-los-á aos menires e cromeleques do Alentejo, à Pedra Formosa de Guimarães, já para não esquecer a própria casa da avó Tirapicos. Papa-Migas, por seu lado, transforma a busca pelo animal de estimação (cuja identidade de espécie é um mistério que vai sendo explorado também) por um percorrer os parques e reservas naturais existentes no território continental, de Montesinho às serras algarvias. A inclusão de coordenadas geográficas precisas para encontrar os calhaus, pequenas descrições dos parques, identificação das espécies aí encontradas, criam suplementos de informação paralelos à história, mas reforçam essa ideia de um “campo” unido e visitável. Adicionalmente, uma vez que o avô Finn é irlandês, introduz-se ainda um pequeno aspecto dos mitos desse outro país, abrindo assim a possibilidade de um diálogo intercultural futuro. Outra abertura ainda enconrtra-se nas guardas dos livros, que brincam com o conto tradicional “O velho, o rapaz e o burro”, em que se mostram todas as permutação possíveis do uso da alimária enquanto transporte. Ou seja, estes livros poderão ser lidos de duas maneiras diferentes e complementares: ora como “simples” livros das aventuras familiares destas duas crianças ora como objectos que ajudem à cartografia de uma re-descoberta do país.

Os promotores dos cadernos Serrote já haviam criado objectos mais próximos da tradicional linguagem da ilustração, com uma espécie de palavrário, Finlândia. De resto, o ilustrador, que presumimos ser sobretudo Nuno Neves, tem um longo historial de autor de banda desenhada, tendo autorado uma série de fanzines ao longo dos anos 1990, sobretudo com o seu companheiro de longa data nessas andanças, Bruno Borges, este reconhecido autor de banda desenhada e membro da Oficina Arara. Há assim um decidido regresso à fabricação de imagens narrativas.

O uso de fotografias como cenários, e a sobreposição das personagens em desenho, dá a estes objectos uma qualidade bem diferente da habitual, e há um encontro muito elegante entre ambos os planos (quiçá pelo tratamento de ambos pela cor e iluminação, que tem características comuns e equilibradas). As imagens das figuras seguem alguns estratagemas estilizados e algo clássicos, mas onde a representação é realista para com a tipologia portuguesa, e não só, e a expressividade é eficiente e clara. A linguagem em si é burilada de maneira a re-absorver vocabulário que não é corrente pelo menos nas gerações citadinas (começando por “calhabéu”), e apresentado em pequenas unidades – cada página apresenta um capítulo, uma etapa dos percursos – que o torna um excelente exemplo de primeiras leituras autónomas.

Para ler histórias ou passear em Portugal, veremos que outros passeios se seguirão.

Nota final: agradecimentos à DGLB.

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