18 de junho de 2015

Quatro títulos. AAVV (Planeta Tangerina)

Declaração de interesses: remetemos ao texto indicado.
O acto de leitura não é apenas a transposição de um código gravado na superfície de um objecto traduzido em conceitos. Nem, no caso de imagens, no da identificação das marcas gráficas com um qualquer objecto da experiência mundana. A coerência textual nasce do entrelaçamento de toda uma série de factores, alguns deles inscritos no objecto-livro, outro nas relações sociais que nos levam a ele, e outros ainda que apenas ao indivíduo-leitor pertencerão. Nos casos bem-sucedidos, a cognição e descodificação é complementada, senão mesmo ultrapassada, por um encontro com uma alteridade total, a qual despertará um desenvolvimento do si substancial. E tal como podemos identificar situações sociais produtivas e facilitadoras do encontro que a leitura constitui, e tal como podemos identificar indivíduos com maior ou menor propensão para a completação desse acto (que nunca é jamais completo, como apontou Georges Steiner), também poderemos assinalar objectos que, em si mesmos, convidam a um acto mais completo do que outros. Os livros da editora Planeta Tangerina, quase na sua totalidade, são livros que convidam precisamente a actos dessa espécie e qualidade, actos completos de leitura. (Mais) 

Conforme já havíamos exposto quando discutimos dois outros títulos desta plataforma editorial, o que encontramos aqui é, a um só tempo, a fundação genuína de um campo estético holístico, em toda a sua acepção (inclusive ontológica e ética), assim como um recentramento das possíveis relações entre o leitor e o livro, entendido este último como um objecto total e totalizante. Remetemos a esse outro texto, todavia, um mesmo enquadramento geral que faz sentido recuperar para a considerações destes outros títulos.
Dois dos títulos presentes, agora trazidos à colação, pertencem à colecção Cantos Arredondados, que fazem avançar uma forma de entender o “livro-jogo” não através de mecanismos exteriores mas antes pela directa e entregada interacção física e manipuladora do leitor ou leitora e o objecto em si. Livro Clap e Daqui ninguém passa! são livros cujas páginas não são “janelas” metafóricas para um mundo diegético que tem lugar lá dentro, mas objectos em que esses mundos têm uma osmose total com o próprio livro. 

Livro Clap, de Madalena Matoso, é um livro na verdade que apenas quando está fechado está a cumprir o papel a que se promete. Todos os flap, flap, os bong, bong, clap, clap, plim, plim, e as onomatopeias que se seguem apenas funcionam quando as personagens no seu interior vêem novamente unidas as páginas, e os objectos assinalados que anseiam pela sua união sonora: as palmas das mãos, as asas de uma borboleta ou de um pássaro, as abas de uma tostadeira, os corpos que se dobram. Ou na verdade, é abrindo o livro, descobrindo a situação e voltando a fechá-lo, e depois repetir o abrir e fechar, abrir e fechar, que as acções se vão cumprido e as onomatopeias se vão formando. Sobretudo se os leitores se entregarem a esse jogo, externo ao livro, mas tornado obrigatório por ele.

Daqui ninguém passa!, de Isabel Minhós Martins e Bernardo Carvalho, é um livro sobre dois temas. Por um lado, o da autoridade, a lógica das suas acções e poder, e sobretudo arbitrariedade e total inépcia em compreender a verdadeira vida. Por outro, um declarado prazer na ocupação e alastramento gráfico que o desenho permite. A gestão das duas páginas – cada spread é uma unidade ou passo na história – é totalmente decisivo na compreensão da narrativa e até na mecânica do seu protocolo de leitura. Até as guardas do livro concorrem para a ideia de celerada e alegre ocupação dos espaços, com a chusma de personagens incontáveis inquietamente esperando entrar em cena e, depois da situação que as permite atravessar a “linha imaginária da autoridade”, abandonadas no seu frenesim. Talvez, talvez, também se poderá ler este livro como um manifesto sobre as fronteiras…

Os outros volumes pertencem à colecção dos livros mais regulares da editora, e aqueles que costumam ser pesquisas profundas de uma ou outra dimensão da existência humana através dos textos que as enfrentam sem pejo, vergonha ou derrota. Bem pelo contrário, a escrita de I. M. Martins é uma extremamente ponderada pesquisa de níveis de linguagem, vocabulário e tom. Se há naturalmente uma preocupação em burilar textos acessíveis a um público mais jovem e alargado, não há qualquer tipo de distanciamento artificial de palavras “difíceis”, e mais, de “temas” que seriam vistos como difíceis. Com o tempo, criado em colaboração com Matoso, é precisamente sobre as consequências da passagem do tempo, observando não apenas o comportamento incansável dos ponteiros de um relógio, mas também do crescimento de grelos em legumes ao bronzear da pele até mesmo às alterações físicas que se esperam nos nossos corpos ao envelhecer ou em outro tipo de transformações menos imediatas, como aquelas que emergem das viagens, da aprendizagem, as transformações comportadas pelo avanço da tecnologia ou da malha urbana, ou da moda e dos ciclos naturais. Montada a sequência de uma maneira que articula estes vários níveis de existência, com os jogos visuais de Matoso em que a simplicidade se alia à redução icónica e ao pormenor de textura que assinala um significado especial, criando ecos e repetições que trazem uma ideia acrescida ao que explicitamente se expõe, o tempo passa também pelo próprio livro, tornando o acto da sua leitura e descoberta numa ilustração ela mesma desse mesmo conceito.

Abzzzz…, também de Martins, com Yara Kono, é basicamente um abc hipnótico, que quer mostrar os passos necessários ou suficientes em direcção ao sono. Cada página apresenta uma letra, cada letra um objecto (que pode ser um objecto propriamente dito ou um animal, uma acção ou uma expressão, uma medida ou uma característica), cada objecto uma pequena lição descritiva do que se tem de fazer antes de dormir ou para que se consiga dormir. Ao mesmo tempo, é uma corrida, tanto de pressa como de resistência, para entender (a jogar, mas sem excitação) quem conseguirá ler, pausada e tranquilamente, todas as letras antes de adormecer.

Mais uma vez, como os outros, um livro que obriga não somente a um acto “simples” de leitura, mas a actos complexos, entregues e integrados de uma performance completa, que abrace os corpos aos livros, entreteça as palavras às imagens, estas às páginas físicas, a navegação a um prazer de descoberta delicado.

Nota final: agradecimentos à DGBL.

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