4 de setembro de 2015

Blast. Manu Larcenet (Dargaud)


“Polza Mancini, de 38 anos, sem domicílio”, é um homem enorme, obeso, aparentemente sem controlo nas porcarias que come, com preferência para uma particular marca de bolinhos de chocolate, mas igualmente no álcool que consome. E as drogas. E o perigoso abismo que se vai abrindo à sua frente até ao ponto de constituir a sua própria vida. Falar de esquizofrenia é uma possibilidade, mas tememos que essa fosse uma explicação simples demais. Blast é uma espécie de voo no interior da tempestade que nutre esse mesmo abismo, até ao ponto em que não distinguimos os seus limites, e confundiremos todo o mundo com ele. (Mais) 

Filho de um italiano comunista (daí o seu estranho nome, advindo de uma expressão partidária), e tendo tido uma infância estranha, Polza atravessou um momento da sua vida que poderia ser considerado expectável, burguês, conforme, mas aos poucos encontrou um deslize, que o afastou dessa mesma “normalidade”. Escritor de cultura culinária com livros publicados, e com um casamento que nos parecerá – agora - improvável, toda a sua vida “normalizada” surgir-nos-á não apenas “fora de cena” (apenas através de analepses nem sempre fiáveis ou sólidas) como algo diluída pela vida presente, quase abjecta. Provavelmente Polza apenas veraneou nesse mundo, e a morte do pai lançou-o definitivamente noutras esferas. Quando entramos na narrativa, estamos numa esquadra, e Polza parece ser interrogado por algo que aconteceu a uma mulher, a qual se encontra em estado de coma num hospital (e lá morrerá, durante o inquérito). Não sabemos que crime será que terá vitimado Carole, mas sabemos que é Polza quem está implicado, o causador desse acontecimento. E como o próprio Polza o diz a um dos agentes policiais, estes já sabem o que é que Polza fez à mulher (ainda que nós, leitores, não), o que importa saber são as razões. É essa distinção então que dará azo a uma longuíssima narrativa, contada pelo próprio Polza, de uma espécie de passeio pelos lados mais sombrios da existência humana, uma espécie de viagem ao fim da noite de Polza. Ainda que geograficamente mais contida que o périplo mundial de Bardamu, mergulha os artelhos também por muito do que passa pelos dejectos e esquecidos da sociedade moderna.

Polza tem inscrito no seu corpo imenso toda uma série de elementos que vão difundir-se no seu carácter: a culpabilidade, a falta de auto-estima, senão mesmo algum sentimento de autodestruição, a abjecção. O problema nasce da linha, pouco compreensível e questionada pela obra, que divide essa caracterização ora num lado objectivo e intrínseco – Polza é mesmo assim – ora num lado exterior e social – é a percepção dos outros, é o juízo de valor informado pelas ideias normativas que temos do corpo “normal”, do comportamento “normal”, etc., que o retrata dessa forma.

Uma das personagens com quem Polza se cruza na sua viagem enquanto sem-abrigo, mendigo, ladrão sem lar, Saint Jacky, diz que, para mudar de vida, é preciso coragem, talento e humildade. Mas esta outra personagem é traficante de heroína e estas suas palavras são menos uma lição espiritual do que um prelúdio ao convite do consumo. Mesmo assim, se lermos essas palavras como referindo-se à relação entre o leitor e a vida do protagonista que lhe é colocada à frente dos olhos, elas fazem sentido para com a navegação necessária em Blast. Acima de tudo, a humildade para aceitar acedermos a uma vida que, na vida real, as mais das vezes, procuramos repudiar. Que raio de vida poderão ter os sem-abrigo, afinal, que raio de felicidade podem os mendigos, os bêbados, os toxidependentes, os doentes mentais, à beira das estradas e dormindo debaixo das pontes,  sequer desejar? Essas vidas e esses desejos não se poderão jamais integrar nos quadros que são o nosso hábito, por isso “não existem”.

Blast mostra como eles existem, e confronta-nos com tal. Mas a obra de Manu Larcenet não procura criar qualquer tipo de moralidade de Domingo: ela apresenta antes da forma mais cabal e crua uma vida, e uma vida em todas as suas dimensões, diárias e nocturnas, de vigília e onírica, de lógica e saúde mas também dos desvios ao padrão. A palavra blast que informa o título, por exemplo, é o termo que o próprio Polza utiliza para se referir às visões que tem (num momento causadas por pulsões internas, às vezes ajudadas por substâncias). Mas são as visões também transmissíveis ao que nós vemos?

Essas visões são traduzidas visualmente pelo autor de uma forma dramática, já que toda a matéria textual e diegética do livro é representada a desenhos e aguadas a preto-e-branco, altamente texturados e “manchados”, ao passo que nos blasts a cor toma conta do plano visual, as mais das vezes com rudes e grossos riscos de lápis ou cera (desenhos, na verdade, dos filhos de Larcenet). Existe um par de cenas do passado apresentado a cores, para aumentar a carnalidade e a bruteza do que testemunhamos, sem estabelecer outra hierarquia às memórias de Polza. Quando a cor surge, é porque há necessidade que os rosas e os vermelhos sejam o mais cruéis possível na sua presença, para mostrar como é que a carne dobra, rasga, se abre e como é que o sangue escorre. É como se atravessássemos paisagens atrás paisagens de um plúmbeo mundo de Paulo Nozolino, para que os únicos desertos de cor ofertados fossem vislumbres violentos de um Ron Athey, um Hermann Nitsch. Existem também outros “intervalos” de cor, mas marcam sempre momentos analépticos, ou conjunções onde imagens criadas por outros (telas que Polza encontra na cave de uma das casas que arromba no seu percurso, colagens de um dos amigos que o alberga, etc.), confirmando a “existência regular” do “mundo normal.”


A estrutura dos livros é extremamente variada em termos de composição, de presença de matéria textual, de burilar diálogos ou gerir os silêncios, de colocar Polza como uma singular presença no seio da natureza ou um factor de destabilização junto a agregações humanas, a ritmos calmíssimos, introspectivos até, e terríveis e ritmadas tempestades internas. Existem raros e delicadíssimos momentos de ternura no meio da abjecção, e episódios da mais cruel das violências. E o autor lança mão dos instrumentos mais adequados para dar conta dessas intensidades: neste livro – bem distinto dos seus álbuns humorísticos, dos seus álbuns tous les âges, e do seu novo projecto de adaptação literária – o autor cruza o seu rápido gesto de esboçar com linhas rápidas e longas as figuras com delicadíssimas tramas para criar quase ilusões fotográficas, sobretudo nos animais. Chamar-lhe expressionista não é suficiente, simbólico não é exacto, belo não serve de nada. Larcenet cumpre de forma quase extrema a noção da “poligrafia gráfica”.

Também narrativamente Blast é uma obra complexa. O livro, como dissemos, é enquadrado pelo interrogatório na esquadra da polícia, espoletado somente pelos dois agentes, mas conduzido totalmente pela corrente de memórias e pensamentos de P., aos quais temos acesso através das imagens oferecidas nas claríssimas e abertas analepses dadas pelo mega-narrador. Tudo nos leva a crer que estamos de facto a ter acesso aos acontecimentos desse passado, e durante as longas páginas dos volumes nada nos leva a crer de que Polza estará a mentir (e o narrador visual, com ele). Mas é somente a ideia de que essas cenas nos são dadas a ver através da rememoração do protagonista que nos deveria pôr alertas em relação à possibilidade de vermos as coisas distorcidas. Todavia, não há propriamente um problema de verdade ou autenticidade no seu testemunho. De incompletude, sim. Contudo, o que Blast pretende examinar é precisamente as expectativas que temos e as narrativas que criamos, mais ou menos ilusoriamente, em torno das pessoas devido a um ou dois traços da sua aparência ou comportamento “visível”.

Se a palavra “obra-prima” é tantas vezes (e particularmente no campo da banda desenhada) empregue de forma insensata, e quase sempre mecânica, senão mesmo imbecil, para marcar tão-somente a diferença de algo que explora estruturas genéricas de uma pequena diferença, a grande vitória de Blast não está em arvorar-se em obra maior, que de pronto conquistará todos e quaisquer leitores, mas precisamente no seu contrário. Ler estes quatro volumes, para além de um determinado “esforço” de leitura, obriga a uma entrega profunda ao discurso tecido pelo protagonista. As vinhetas intensas em que as ilusórias estátuas da ilha das Páscoa – patronos dos seus blasts - surgem são tão hieráticas e inamovíveis quanto o rosto de Polza. Nós sabemos que existe uma diferença na diegese, opondo “homem vivo” a “estátua”, mas ambos olham-nos com a mesma quietude ocultando uma fúria que tentamos evitar, ou pelo menos que nos coloca numa tensão permanente para que tentemos desviar-nos quando explodir.

Mas enfim, porquê dizer “esforço”? Essa será uma maneira negativa de valorizar a tarefa de leitura, a qual nada terá de diferente para leitores de um Robert Musil ou um Hermann Broch, por exemplo, cujas afinidades com a escrita de Larcenet se encontram nos excursos temporais de Polza em relação à “linha central de inquirição policial”, tornada de imediato secundária, à condição ensaística das considerações da(s) personagem(ns) sobre a condição humana, discorrendo sobre a relação que temos com o corpo, os progenitores, os objectos amados, os cheiros, a ebriedade, a crença na transcendência… e a impossibilidade das instituições sociais criadas pelo homem serem capazes de a compreender, apreender e muito menos capturar. Não é por acaso que Blast se disfarça em inquérito policial. Se o propósito da vida é a morte, como queria Freud, nem todos os caminhos exploram com intensidade esse propósito, ou melhor, de forma consciente, livre e redonda como percurso de Polza Mancini.

N’A morte de Virgílio, lemos: “a fraca voz da alma, que se chama canto e que proclama com o pressentimento da desgraça também a salvação que desperta, pressagiadora de conhecimento, prenhe de conhecimento, indicadora de conhecimento, como toda a verdadeira canção”. Não poderíamos ver a “confissão” de Polza como uma canção que nasce precisamente como assinalando essa fraca voz de alma, que se expressa totalmente e na mais brilhante das intensidades no momento preciso em que se apercebe do seu fim próximo (seja este físico, moral, societal)? Um dos maiores equívocos da (má) arte é querer transformar a vida vivida em beleza, e não em restitui-la à vida, de outro modo. Estamos em crer que Larcenet não quer que vejamos a “vida” de Polza como uma obra de arte, mas sim que vejamos a sua expressão como uma restituição de vida. Esta vida é drasticamente distante daquela que ele poderá ter levado a cabo legal e socialmente. Essa vida é inapreensível. Mas é vida. São muitas as obras de banda desenhada que são excelentes em criar estruturas narrativas interessantíssimas, de uma complexidade recompensadora, maravilhosa até. Ou que criam mundos visuais absolutamente sólidos e promissores. Ou que levantam a própria metatextualidade e estrutura da banda desenhada a níveis de reflexão autónoma que multiplicam a sua força. Mas quantos carregam a vida?

Quatro volumes de umas 200 páginas cada um poderá tornar-se um esforço particularmente avantajado para alguns leitores, sobretudo aqueles apressados no que diz respeito à trama e a uma economia, digamos, totalmente utilitária e subsumida a essa mesma linha. Há aqui pouco de “entretenimento”, e nada de “pedagógico”. Por isso falamos de uma leitura exigente. Mas Larcenet é um autor que procura aqui aumentar o grau de ambientação e das ondas de choque psicológico implicadas pelo “blast”.  


A descida de Polza, e dos outros homens e mulheres com que se cruza (ou ele próprio tece), não é ao fundo da moralidade ou da abjecção. Não reside aí o choque. É nas várias formas de traição à solidariedade que o moralismo burguês (o qual, não o ocultemos, partilhamos, e nos é difícil abandonar) esperava que existisse e que, certamente, é o escolho principal à mais ínfima conquista de poder efectivo que estas classes de cidadão – excluídos pelos poderes eles-mesmos como tal, ou até auto-excluídos de tanto habituados a essa decisão – poderiam conquistar. Se não for uma viagem ao fundo da noite, como afirmámos acima, em que uma qualquer afirmação subjectiva ainda poderia ter lugar, é uma descida vertical. Uma queda, cujo resultado é uma cadência de fragmentações. Mais: a palavra a utilizar seria a francesa brisé, mais próxima da fragilidade específica das feridas ofertadas pelos vidros. Todas as ficções confrontam-nos com um imagem de nós mesmos, como se sabe. Por vezes esses espelhos são dolorosos de mais. Blast não deixará os seus leitores incólumes. 

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