23 de setembro de 2015

Graphesis. Johanna Drucker (Harvard University Press)

Tal como no caso de TheVisible Text, também este livro, de uma das mais conhecidas teóricas de livros de artista, mas também da teoria visual e textual e seus cruzamentos mais estimulantes e perturbadores, terá determinados elementos que se podem tornar interpelantes e úteis para a reflexão sobre o papel da banda desenhada, ilustração e outras áreas contíguas na paisagem editorial e da materialidade das artes do livro. Bebendo do design, da estética, da história editorial, da história da ilustração ou da imagem, e da sua poderosa relação com o objecto-livro e a cultura do texto, e subintitulado Visual Forms of Knowledge Production, este volume não é tanto um conjunto de novas ideias ou propostas de Drucker, mas uma espécie de curto balanço de algum do seu trabalho dos últimos anos, que se concentra na conjunção da visualização do conhecimento, ou como é que a apresentação visual de elementos conduz necessariamente à produção de conhecimento determinado. Por outras palavras, a escolha formal em relação ao conhecimento a apresentar é, logo, determinante da natureza desse mesmo conhecimento. (Mais)

Como torna evidente Drucker, “[e]stes vários formalismos criam uma divisão entre aqueles que acreditam numa qualidade inerente na própria expressão gráfica (qualidades efectivas das linhas, formas, movimento) e aqueles que seguem antes uma abordagem estruturalista na valorização dos signos gráficos num sistema de convenções (a semiótica)” (pg. 43). Drucker, naturalmente, construindo a sua visão numa sólida formação semiótica, abandona os dogmas dessa abordagem para se colocar na esteira dos primeiros. Este posicionamento permite que a autora, e outros com ela, a olharem (a lerem-verem, poder-se-ia dizer com Bredehoft) para “além” das formas dadas, que correm muitas vezes o risco de serem encaradas como “naturais”, “verdadeiras”, “objectivas”: “Estão tão naturalizadas [formas tais como] os mapas e as barras geradas por folhas de Excel [spread sheets] que passam por representações inquestionáveis de 'o que é'. É esta a grande marca dos modelos realistas do conhecimento, e precisam de ser submetidas a uma crítica radical, que nos permita fazer regressar para primeiro plano os princípios humanistas da constructabilidade e da interpretação” (125). Assim, Drucker chega ao mantra que informará as páginas de Graphesis: data é capta, isto é, “[a informação] é feita [taken] e não dada [given], construída como uma interpretação do mundo fenoménico, e não é inerente a ele” (128).

O livro é apresentado com uma estrutura relativamente original. Está dividido em capítulos temáticos-disciplinares, mas têm extensões diferenciadas, e são “interrompidos” com várias folhas duplas que agem como focalizações mais específicas sobre determinados instrumentos. Uma dessas partes, mais curtas e especializadas, intitula-se “janelas” [Windows], bebendo tanto de Alberti como da Microsoft, e debate de forma sumária alguns dos instrumentos de visualização que perfazem a matéria da discussão de Graphesis: a árvore de Walter Crane, os diagramas Gestalt, o de Jesse James Garrett sobre design de interfaces, as variáveis gráficas de Jacques Bertin, etc., o que inclui as “conexões” entre imagens distintas, que agrega Scott McCloud e Eisenstein. Profusamente ilustrado, de uma maneira tanto pertinente como informativa, Graphesis é um excelente manual de consulta e leitura rápida que servirá como primeira paragem a quem deseje navegar estas águas turbulentas que são a convergência da semiótica visual, os estudos culturais, a crítica humanista pós-estruturalista. E um excelente antídoto à ideia de que é possível falar de forma sem atender ao seu conteúdo ou imaginar um conteúdo veiculado sem forma.

E o grande cerne do contributo de Drucker, neste pequeno manual, é esse mesmo: a ideia de como estas apresentações visuais de conhecimento não podem ser consideradas jamais de forma inocente ou transparente, mas sim como objectos construídos e formados por subjectividades enunciadas, no seio das quais se articulam relações de poder e estruturações ideológicas, tudo o que “requer saltos significativos no emolduramento cognitivo” (152). Uma leitura contrastiva com a teoria multimodal de um Leeuwen e Kress seria bastante pertinente, mas uma das vantagens de Drucker é que ela é menos determinista que os outros teóricos de semiótica social, libertando as produções visuais de predeterminações linguísticas, culturais e até mesmo políticas. Bem pelo contrário, a crítica desta autora permite re-politizar a leitura destas construções visuais: “Ler sempre foi uma performace de um texto ou obra, sempre foi um refazer activo através de uma instanciação” (154). Aliás, a autora informa-se com o trabalho famoso dos biólogos chilenos Francesco Varela e Humberto Maturana, para sublinhar a maneira como “nenhuma experiência existe a priori, o mundo e a sua leitura formam-se [come into being] numa relação codependente de affordances [traduzível como “possibilidades de agir”, ou mais filosoficamente, através de Kant, “condições de possibilidade”] (155).

Outro aspecto admirável do livro de Drucker, e uma situação passível de se empregar o cliché de “lufada de ar fresco” é a atitude da autora para com a “coisa digital”. Num momento em que o aparente entusiasmo cego e celebratório sem visão histórica, contextual, integradora e até mesmo sem distância crítica, informa a esmagadora maioria dos defensores da “especificidade dos meios” do digital, Drucker traz um imenso caveat que revela a sua inteligência cultural e analítica. Em vez de julgar um “texto” pela sua especificidade material ou pelos traços inerentes e essencialistas do seu meio (o que não quer dizer que não haja uma atenção analítica para com as especificidades formais, mas tão-somente não as arvorar em essências intransponíveis e com valorização em si mesmas), o valor (moral, estético ou intelectual, como diria Noël Carroll) encontra-se alhures, sem lhe retirar os méritos próprios. Uma dimensão possível é que a leitura de Drucker da realidade digital é menos de uma autonomia e ultrapassagem específica do que encontrar pontos em comum com outros meios (não-digitais), sobretudo no que diz respeito ao busílis de Graphesis, isto é, as funções e relações entre apresentação e cognição. Os instrumentos materiais podem ser, ou são-no de facto, distintos, mas as questões de apresentação, representação, processamento, navegação, orientação, referência e troca social – os termos que Drucker debate – são comuns.

No que diz respeito à banda desenhada e/ou ilustração, apesar desses não serem objectos de estudo privilegiados ou imediatos no volume, o que se pode compreender é algo que escapa somente à gravidade da produção (a vontade do(s) autor(es)) ou à interpretação selvagem do(s) leitor(es), mas antes à combinação complexa, cultural, mutante e tensional, entre aspectos formais e escolhas ideológicas. O uso de determinado tipo de caricaturas, de esquemas cromáticos, de espessuras mesmo de linhas e escolhas de importância da matéria verbal e a sua colocação dinâmica (ou não) no espaço de composição, tudo isso ditará os afectos implicados pela obra junto ao espectador-leitor. Isso corrigirá a ideia de que existiriam “estilos universais” ou “simples de ler”, e a que há uma escolha politizável e aderente a uma perspectiva do mundo desde logo presente no estilo, levando inevitavelmente a uma apresentação do conhecimento enviesada e informada.

Graphesis é, então, menos um instrumento de mera análise formal visual do que uma defesa ideológica de discursos hegemónicos que se disfarçam de “formas naturais” e “objectivas”. Ao se atender o facto de que a informação é “graficamente constituída” e que essa apresentação visual implica “qualidades expressivas”, valida-se acima de tudo a “natureza interpretativa do conhecimento” (129).

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. Com a excepção da capa, imagens retiradas da internet. 

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