29 de setembro de 2015

The Realist. Asaf Hanuka (Boom Studios/Archaia)

Conforme indicámos no texto sobre The Divine, a leitura de The Realist foi feita no mesmo enquadramento de expectativas informadas pela leitura, longínqua no tempo mas presente na memória, da antologia dos dois irmãos Hanuka, a publicação Bipolar. O que essas leituras cruzadas ou permanentes representam é a ideia de que estes autores explorariam territórios que se encontrariam entre a tendência, então emergente, da nova banda desenhada alternativa internacional e alguns interesses por uma pesquisa específica da fantasia embrenhada no realismo de maneira a torná-la mais premente, no que diz respeito às experiências do desejo, fantasia, sonho, sexualidade, anseios, afectos, ou sentimentos que encontrariam alguma dificuldade em serem expressos de maneira “objectiva”. Uma tendência que parece informar alguma literatura contemporânea, se tomarmos como modelos Junot Díaz, Jonatham Lethem, Haruki Murakami, Jonathan Frazen, Tom McCarthy, e outros, assim como Etgar Keret, autor israelita adaptado por Asaf Hanuka à banda desenhada na publicação indicada. (Mais) 

La boucle est bouclée, portanto, com este volume. Superficialmente, trata-se de uma colecção de vignettes sobre a vida pessoal e real do autor. Cada “história” ou “anedota” é contada em somente uma página, havendo de splash pages a páginas estruturadas das mais variadas formas, muitas vezes de modo regular, aqui e ali obedecendo a um qualquer princípio organizativo (aparentado às limitações oubapianas, por exemplo). Não há nenhuma intriga a uni-las, sendo o princípio agregador “a vida” de Hanuka, um pouco como acontece em Diário Rasgado, de Marco Mendes. E tal como na obra do autor português, a realidade da vida expressa-se muitas vezes através de instrumentos não-realistas. O “realist” do título dirá provavelmente respeito à atitude de Hanuka face à situação social em que se integra: a Israel contemporânea, dividida entre uma sociedade avançada em termos económicos, tecnológicos e culturais, mas atascada num conflito bélico, político, económico e, como querem alguns, “civilizacionais” (nós diríamos apenas que terá a ver com ocupação territorial, emancipação dos povos e direitos civis). Se alguns dos temas podem focar problemas domésticos, profissionais, comezinhos ou pessoais – cuidar dos filhos no parque, ir à praia, visitas familiares, uma app preferida, as aulas que dá de desenho, etc. - outros acabam por dar espaço antes a uma leitura da situação económica mais premente (a falta de acesso ao crédito, a pobreza e a fome em certos sectores) ou a guerra (e tudo o que lhe está associado: os discursos nacionalistas, o conservadorismo político, a propaganda de parte a parte, etc.).

Mas The Realist não tem a mesma gravidade que, voltando à comparação, Mendes atinge. Hanuka parece mais interessado em criar breves anedotas com um sabor humorístico, mesmo nos temas mais fortes. Poder-se-ia pensar ao contrário, e encontrar pelo meio de todas estas pequenas anedotas e momentos humorísticos estas tais notas mais graves e atentas ao mundo que o rodeia, havendo então os tais temas recorrentes da sua obra. Mas se se poderia argumentar que Hanuka pretende constantemente mostrar os fantasma e perigos que se ocultam sob a patina da sociedade consensual, a nós parece-nos que é precisamente a possível fuga mesmo nessas circunstâncias que o autor parece celebrar.

Contudo, a principal estratégia do autor é misturar esses dois humores, assim como as duas “esferas” do realismo e da fantasia. Algumas das histórias estendem, por exemplo, uma faixa textual (dita pela mesma personagem, ou por várias, ou pertencendo às legendas da voz narradora, que pode ou não coincidir com o autor/protagonista) ao longo de várias vinhetas, procurando que ela crie tensões de distância, ironia ou contradição com as imagens, levando a significados que nenhuma das duas frentes atingiria sozinha. Além disso, também a leitura cruzada das histórias, assim como das referências intertextuais espalhadas nas histórias ou até nos seus títulos, pode levar a uma leitura mais completa, sobretudo na relação entre Hanuka e a sua mulher, que não é apresentada como um mar de rosas, mas na mais chã das realidades quotidianas: o facto dessa presença ser recorrente é, porém, sinal de que se mantém, e isso é já uma vitória e felicidade, talvez. Leituras individuais de cada história poderia levar a uma compreensão de determinados problemas ou factos históricos com que o autor se debate, mas isso só faria sentido num enquadramento maior e disciplinado.
Nada disto significa que não existam histórias (todas elas com título próprio, reforçando esta possibilidade de isolamento) que contenham um impacto mais significativo. Uma imagem particularmente interessante (estratégia visual que repete noutros pontos) é aquela que contrasta o seu filho a receber um boneco dos Transformers e as crianças asiáticas que o constroem. A qualidade icónica, singular e coetânea destas páginas associa-as à tradição do cartoon editorial e/ou político, para além da banda desenhada, podendo dizer-se que The Realist seria um encontro ou um híbrido desses dois territórios, indo mais fundo nas relações e características que já partilhavam.

O desenho de Hanuka é aqui bem mais rápido do que em demais trabalhos, o que é expectável pela natureza diarística, contigente e urgente destes trabalhos. Seguramente que o trabalho de linha, rápido e caligráfico é digitalizado de imediato ou mesmo desenhado por meios digitais, e seguidamente o autor acrescenta o negro e as cores de forma sumária e simplificada, se bem que a sua experiência e “olho” lhe permita um nível de expressão imediato, assim como jogos de significação cromática claríssimos, em determinados momentos. Conforme as histórias, encontraremos um uso da cor menos acabado, uma vez que a sua importância residirá nos acontecimentos ou no texto, mas as mais das vezes há uma escolha judiciosa numa paleta mais reduzida, ou a concentração de uma cor complementar num objecto determinado, ou há uma distribuição específica nos planos, etc. Em relação a The Divine, já havíamos notado como o trabalho de cor era exímio, ainda que não possamos estar seguro a qual dos irmãos atribuir essa responsabilidade.
Nota final: agradecimentos a The Comics Alternative, por providenciar uma cópia digital do livro.

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