8 de outubro de 2015

Dois irmãos. Fábio Moon, Gabriel Bá, Milton Hatoum (Quadrinhos na Cia.)

Tal como sucedera com The Divine, também este livro junta dois gémeos para tecerem a história de outros dois gémeos. No caso presente, trata-se de uma adaptação do romance Dois irmãos vem de Milton Hatoum, publicado em Portugal como Dois irmãos, na excelente colecção Sabiá da Cotovia, que nos tem permitido conhecer toda uma geração de escritores brasileiros contemporâneos (e inclusive outros títulos do autor). (Mais) 

Em termos temáticos, o romance de Hatoum elabora-se em torno de um dos mais antigos tropos da humanidade: a rivalidade entre irmãos. Espraiando-se ao longo de umas dezenas de anos na Manaus dos anos do pós-guerra, Dois irmãos centra-se na vida rapidamente encapelada e separada de Yaqub e Omar, filhos de um emigrante libanês, Halim, e de Zana, uma mulher de grandes paixões que quis manter uma visão romântica até à sua morte. Halim gere uma loja que vende as mais diversas quinquilharias, mas que servem mais como ponto de encontro dos seus conterrâneos do que propriamente uma via de enriquecimento sério. Os dois irmãos partilham a mais esperada vida, mas os caminhos começam a distorcer-se em torno do amor, até um ponto de viragem dramático, senão mesmo trágico, e que instala uma primeira injustiça, empurrando Yaqub para uma temporada na aldeia natal do pai, e Omar para mais de baixo das saias da mãe. Montado o esquema da rivalidade e da grande desigualdade – repetindo os esquemas bíblicos -, é apenas o regresso de Yaqub que, com a proximidade, pode pôr em movimento a necessária tensão e conflito que vai alimentar a trama.

Conforme os restantes romances de Hatoum, também Dois irmãos é uma mescla entre biografia familiar – o autor é descendente de libaneses, nasceu em Manaus, etc. - e ficção, observação cultural local e historiografia política e literária. Há espaço para todas essas pesquisas em torno da espinha dorsal da intriga principal, todos esses elementos aproveitados nesta adaptação à banda desenhada. Aliás, parte da força visual dos gémeos, neste título em particular, está precisamente na capacidade de fazerem erguer os vários cantos diferentes, sob luzes e vivências distintas, daquela cidade numa espécie de fronteira entre a malha urbana e a selva amazónica, a vida intensa ao longo do rio e as mais desbragadas noites das boîtes onde surgem os sons electrificantes e dançantes de tendências globais... Usando as mais diversas técnicas de enquadramento, permitindo desde voos de pássaro sobre os rios, deambulando pelos casebres dos índios, ou as ruas iluminadas em dias de festa, esta Manaus, apesar do preto-e-branco, pulsa de vida. E é um veículo que conduz bem esta narrativa de polaridades, as quais, de tanto contrastadas, se começam a esbater.

Essa é talvez uma das características da dimensão narrativa de Dois irmãos. A história é apresentada com algum grau de desarrumação cronológica, iniciando-se o mais próximo possível do presente da narração, e depois indo recuando a passados sucessivos, que se vão revezando para “explicar” a rivalidade, para depois se manterem no coração da trama. Apenas avançados na narrativa descobrimos a quem pertence a voz narradora e condutora – que numa adaptação de banda desenhada se torna ainda mais paradoxal dada a existência de uma faixa visual, não “devolúvel” da mesma forma que a matéria verbal -, facto que pode confundir, por um lado, as expectativas da relação dessa mesma voz com os protagonistas, a sua inscrição moral, por assim dizer, como também, por outro lado, vem confundir ainda mais o posicionamento possível do leitor. Se durante uma determinada fase, e isto é discutível, os factos parecem contribuir para que tenhamos uma posição de maior simpatia e compreensão para com Yaqub, e até antipatia por Omar, essa balança acaba por, mais tarde, tornar-se demasiado abalada, e terminaremos com uma ambivalência extremamente marcada. Da melhor forma claro. Pois as pessoas não são más de todo, ou boas de todo, são pessoas. E, portanto, falíveis, fracas, com defeitos. Humanas.

Compreende-se assim que, dado que temos nesta obra uma exploração das teias familiares e da condição humana mais sólida, e explorada por um outro autor, evita-se a esmagadora maioria dos escolhos delicodoces em que os autores se perderam em Daytripper. A condução permitida pela obra de Hatoum nutre uma capacidade de vislumbre do humano muito mais matizada e veraz.

Como dissemos, o romance espraia-se por outras realidades para além da imediata intriga familiar, por isso testemunhamos também, mesmo que de uma forma ligeiramente descentrada, a transformação do Brasil numa economia moderna, a emergência de Brasília, uma certa vida intelectual e académica que medrava por estas cidades, a folia possível nas noites e álcoois, e depois também, o surgimento de um regime cada vez mais repressivo e violento, que vem contribuir de forma decisiva para a clivagem dos irmãos. Aliás, essa separação, se no início tem tons bíblicos, e se pauta pela pulsão do sangue, à medida que vai sendo informada pelos distintos haustos dos dois irmãos, que vão habitando esferas sociais e culturais diferentes, vai ganhando igualmente alguns contornos alegóricos. Estamos em crer, porém, que essa tonalidade jamais se torna demasiado ambiciosa ao ponto de romper a elegância emocional que Dois irmãos pode providenciar ao nível da experiência mais humana.

Sem querer revelar parte da “chave” que desdobra a história numa tensão de várias gerações, o facto do narrador ser uma geração mais novo, e também deslocado socialmente em relação à “família central” torna-o um foco, a um só tempo, de parte interessada mas também de pólo independente. Se os irmãos, naquela leitura alegórica, podem assumir os papéis de quem assume posicionamentos demasiado extremos, ou pelo menos ancorados em ideias mais ou menos empedernidas, o jovem menino filho da criada Domingas, cabocla (ou índia mesmo, sendo caboclo o rapaz), acaba por se colocar numa posição descentrada, de fora, quase neutra, de um almejado, mas impossível, narrador neutro. Na verdade, ele é parte interessada, mas ela bascula tal como a posição do leitor. Uma imagem óptima precisamente da visão de quem não experiencia uma determinada situação extrema: tomar partido em relação a algo que não se experienciou é sempre problemático, sobretudo se se tomar uma das posições extremas. Pensamos que, em parte pelo menos, é essa uma das grandes interrogações do livro.

Em termos gráficos, Dois irmãos aumentou o grau do contraste preto/branco, assim como da estilização das personagens, estando quase perante um desses delírios da animação da UPA da década de 1950 (o que seria apropriado). Porém, se isso leva a algumas composições muito elegantes, nos momentos mais dramáticos (a vigília nocturna no coreto, as cenas de dança nos lupanares, alguns dos panoramas urbanos abertos), há outros em que afecta a clareza narrativa e até mesmo uma distinção das personagens mais célere, o que atrapalha a leitura mais fluida e emocional que a obra pede. Os gémeos brasileiros, afinal de contas, não procuram o mesmo tipo de dramatismo dinâmico de um Frank Miller na fase Sin City, ou de um Eduardo Risso. Bem pelo contrário, sempre cultivaram uma legibilidade suave das suas figuras, uma identificação esquemática das emoções, etc. que aqui perde alguma da sua eficácia.

Já em termos de composição, estrutura, ritmo, distribuição das focalizações narrativas, Dois irmãos é possivelmente o seu livro mais acabado, mais musculado que Daytripper, mais nítido que Pixu, e mais culturalmente ancorado do que Casanova, animal bem diferente.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

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