4 de novembro de 2015

L.L. de Mars/ Steve Aylett. Judex/Johnny Viable and his terse friends (La cinquième couche/Floating World Comics)

Brevemente, queremos dar conta de dois projectos que, de uma forma muito distinta, operam sobre um mesmo princípio e, desta forma, também contribuem para um entendimento cada vez mais alargado da banda desenhada enquanto disciplina artística. Apesar da oferta de textos, canais de distribuição e até sectores de prática serem cada vez mais múltiplos, ainda existe uma ideia muito forte que confunde a validade do gesto com a de um juízo de valor sobre a obra em questão e o respeito (ou falta dele) para com as formatações existentes. Repetimos uma ideia já há muito apresentada: a de que se se quer acreditar na banda desenhada enquanto disciplina artística, tem de se deixar que ela persiga precisamente as justezas heterógeneas que a arte, enquanto conceito, exige. (Mais) 

O projecto Judex consiste num volume que reúne uma quantidade de pranchas desenhadas pelo elusivo autor L.L. de Mars, a que ele dá o nome de “matriz Judex”. São 32 páginas, estruturadas como bandas desenhadas convencionais, com vinhetas, personagens recorrentes em espaços identificáveis, em vários graus de interacção umas com as outras e outros objectos, balões de fala, algumas linhas cinéticas e simbólicas, desvios simbólicos. Porém esses balões e essas páginas estão desprovidas de texto, apresentando-se em branco. Existem personagens recorrentes, como dissemos, e que parecem constituir uma pequena unidade familiar: uma menina, o seu pai de bigode, uma mãe de penteado alto, um homem de cabeça de galo, outras. Nalguns pontos (viaturas, ambientes, cenas, a máscara de galo) toda a matéria visual remete ao universo cinematográfico – e não só – dos fumetti gialli, o cinema de Feuillade, e a associação ao filme de Franju no título e em cenas específicas é uma citação directíssima e textual).


Estas páginas depois são entregues “vazias” como elementos comutáveis e recombináveis, como diz o autor, “como uma partitura de Ballif ou de Cage”, passando a estar à responsabilidade dos “escritores” ou “intérpretes” convidados a criação de uma nova história. Assim, temos reunidas neste livro, para além da matriz apresentado no fim, versões tecidas por William Henne, David Christoffel, C. de Trogoff, Antoine Hummel, Jérôme Leglatin, Laurent d'Ursel, Xavier Löwenthal e o próprio Mars. Apresentamos aqui, numa fileira, três versões distintas de três autores trabalhando numa mesma página. Porém, para além das alterações internas e pseudo-diegéticas (nome das personagens, suas relações familiares, etc.), há também alterações em relação à ordem, frequência (alguns autores dispensam algumas páginas, outros repetem a mesma prancha várias vezes na mesma unidade, uns usam a página x no início, outros colocam-no no fim, etc.).

Estas relações levam a trazer para primeiro plano o processo fundamental da leitura e da capacidade de associação e re-escrita que ela implica sobre uma mesma matéria. As questões que Groensteen apontaria da tressage aqui nascem não tanto da exigência autoral e/ou textual, de maneira intrínseca, mas antes da circunstância dessa recombinação. Deste modo, pensamos que o grande fito de Judex é desmontar a visão, tantas vezes tornada “essencial”, entre a suposta indistrinçável relação entre matéria visual e textual, mas antes alertar para a quota-parte da percepção flutuante do próprio leitor. Não tem nada a ver com um entendimento superficial de uma “obra aberta” (conceito de Eco bastas vezes abusado), mas como um escape ao regime linear da intriga, da história, para criar intensidades da matéria pura da banda desenhada, uma espécie de desempenho dessa mesma matéria. A “vontade” do autor é assim dissolvida na interacção com o acto de leitura. Não há tanto uma desresponsabilização dos autores como uma ulterior responsabilização no leitor.

Johnny Viable é um animal bem distinto. Nascido nas páginas do fanzine dirigido por Alan Moore, Dodgem Logic, esta é uma revista, em todo aparentada com uma revista barata de banda desenhada de material genérico estadounidense dos anos 1950 (histórias de médicos, miúdos suburbanos, espiões, ficção militar, recriações historiográficas, ficção científica, de terror, romance, etc.), mas em que a matéria pode ou não ser recombinada – há vários graus, desde a manutenção (supomos) de uma prancha de modo prístino, até recombinações e reenquadramentos de vinhetas, até mesmo colagens e alteração de alguma matéria interna a uma vinheta. Seja como for, o texto verbal é sempre alterado, e é aí que reside a grande força de Aylett, que Moore, no blurb final, chama de “escritor”.

Tal como o exercício de Ayroles sobre algumas páginas de Michel Vaillant no projecto Oubapo, opera-se aqui uma substituição do texto que, a um só tempo, desliga a matéria verbal do que poderíamos, com Deleuze, chamar do regime do plano-acção da banda desenhada, mas ao mesmo o reterritorializa para acentuar dimensões mais absurdas. No caso de Vaillant/Ayroles, o que se destacava é a natureza algo patética e medíocre da própria prática artística de Jean Graton (fora a abordagem tecnicista em torno dos automóveis), transformando-se numa espécie de meta-discurso da própria banda desenhada (aquela banda desenhada em particular). Porém, no caso de Aylett, esse destrinça é ainda mais radical, e o que emerge do texto é pura e simplesmente um bloco de escrita do absurdo, que por vezes toca as raias de uma poeticidade selvagem.

Numa das histórias, intitulada “The drains of Davey Cozier”, que parece misturar uma novela doméstica com uma intriga de um dope fiend, o protagonista afimar, “há segredos espalhados pelas ruas... não olhes para eles”. Poderão ser esses segredos das ruas (destas bandas desenhadas) que se deslocam e tornam visíveis pelas operações quase-mecânicas do autor? Se algumas das histórias apresentam cenas violentas – crimes, cenas de guerra, discussões – e que provavelmente são redimidas por uma qualquer moral final, mesmo que seja aquela da sua própria exposição, toda essa violência torna-se ainda mais premente nestas construções, uma vez que se encontram numa queda livre, não estando subsumidas a uma intriga clara, logo moralizável.

Não há propriamente nenhuma lição a aprender no fim destas barragens de texto sem sentido. E em alguns casos, senão sempre, essa barragem é esmagadora, com balões enormes a tomar conta de quase toda a vinheta. O facto das imagens serem por vezes digitalizadas com uma resolução péssima, e as colagens não procurarem qualquer tipo de homogeneidade gráficas, mas bem pelo contrário deixam nítidas as suas diferentes qualidades, tornam toda a superfície imagética, bem, feia. Não se procura aqui qualquer tipo de polidez. Isto apenas reforça a qualidade sem qualidade da abordagem, e torna os textos mais centralizados no que diz respeito à atenção do leitor. Para os leitores-fãs do gibberish de Grant Morrison, Aylett é Morrison em esteróides. Para os amantes do filme de Jean Cocteau, Orfeu, imaginem que a cena da mensagens crítpicas da rádio se mantinham na mesma, mas se sintonizaria a versão trash metal.

Como no caso de Judex, é sobretudo e separação, ou o intervalo, mais do que a aliança e a mútua construção aquilo que emerge entre as imagens e o texto, se no atermos a essas dimensões somente. É como se se montasse um mecanismo em que existe uma aparência conducente à ilusão de uma narrativa – mesmo que num caso, Judex, os próprios desenhos mais ou menos coerentes sigam uma estratégia de apagamentos, borrões, sobreposições, próprias ao estilo de Mars, e noutro, as colagens e conflitos de qualidade de imagem façam pensar num amadorismo quase insuportável – e depois uma narração textual, uma camada de busca de sentidos mais “autoritária” que tudo dissolve, até mesmo a sua própria natureza.

Nota final: agradecimentos a P. Matthey, pela oferta de Johnny Viable.  

2 comentários:

José Sá disse...

Olá Pedro,
Propositadamente li esta entrada uma só vez e não a reli ao comentá-la, ao contrário do que me é hábito. Se o fizesse retiraria outras leituras desenquadradas no contexto do que agora estou a escrever. Será mesmo verdade que se a bd quer assumir uma igualdade de estatura entre as demais formas de arte terá de repetir como estas os percursos já feitos? Injustiça te seja feita, se o teu texto é uma prancha de bd, isto não é mais que uma inscrição sobre um balão aberto, mas assim são as leituras primitivas. Se continuasse, na segunda vinheta as personagens afirmariam que encetar um caminho obrigatório pode derivar a bd, ou qualquer outra forma de arte, para a ciência, ao encerrá-la num campo de concentração epistemológico vigiado por dogmas ferozes. Um investigador da arte não esconde em si um oxímoro? Costumas colocar a ti próprio este tipo de alertas ou estou somente a colocar um desafio pelo desafio?
Mais que quaisquer outros, sempre me fascinaram no cinema os filmes que permitiam um infinito espaço de interpretações, pela ambiguidade das personagens e da história. Filmes do Cronenberg e do Lynch (ambos Davides, mas de autores diferentes:-) deixam sempre o desejo de regresso à sua diegese para contar uma história diferente, bastando uma nova montagem das cenas, ou até a recuperação de outras nunca filmadas, ou pertencentes a fitas que estariam melhor enquadradas na versão, memória, que em cada momento se constrói. Dizias no teu VerBD que podemos regressar às histórias de que gostamos sem nos importarmos de já conhecermos o seu final. Mas quantas leituras bastarão para de facto o conhecermos?
Avaliar as possibilidades e a extensão de um trabalho gráfico parece-me um exercício comum e que já é feito há muito tempo, bastando alguma aliteração de imagens e outros truques de mesa de montagem, habituais até no Chris Ware sempre que ele quer marcar pausas entre eras ou gerações. Inclusivamente quando ele reparte a mesma obra por vários formatos que permitem começar a história por qualquer um dos suportes, não estará a permitir-nos contar outra história com os mesmos desenhos? Certamente que a tua memória enciclopédica poderá recordar duma assentada uma meia-dúzia ou mais de obras com páginas amovíveis entre si com enredos recombinantes. É fácil pegar num maço de pranchas e entregá-las a um conjunto de autores para que cada um lhe confira a sua narrativa, mas para isso não basta já entregá-las aos leitores? Outro exercício é o mesmo autor fazer várias versões duma mesma e exacta criação. Quantos de nós entram numa discussão sabendo que não iremos mudaer de ideias? Não acontece a mesma coisa ao autor de uma história?
Uma possibilidade será também reler a tua crítica e usar outra parte do meu cérebro para fazer um novo comentário.
Obrigado
Aquele Abraço,
José

Pedro Moura disse...

Olá. Em primeiro lugar, as minhas desculpas por responder tão tarde. Bom, não sei se lendo algum particular trecho do meu texto se leva à ideia de que estou a dizer que a banda desenhada deve seguir caminhos já trilhados por outras disciplinas artísticas, mas não nego que possa haver essa ideia. Porém, na contextualização do trabalho contínuo que espero ter feito - presunção à parte -, acho que é bastante clara a minha posição sobre esse assunto: não se trata tanto de seguir "percursos já feitos", mas sim de aprender a dialogar com as questões prementes colocadas alhures, e encontrar modelos de interrogação que possam fazer também repensar a banda desenhada enquanto arte. Sempre me fez confusão que as pessoas que mais se batem pelo termo "9ª arte" são as mesmas que, as mais das vezes, não aceitam experiências ("artísticas", "experimentais", "diferentes", "difusas", "expansivas"?) na banda desenhada como banda desenhada tout court.
A ideia de "obra aberta" é um caso bicudo, pois o Umberto Eco propôs um conceito extremamente útil para pensar a interpretação literária, e foi abusado até ao ponto das pessoas o empregarem como "posso interpretar como quiser". Não, não podes: existem elementos concretos e objectivos (no sentido de "possuindo as qualidades de um objecto") - daí que o próprio Eco tenha depois feito uma resposta a esse abuso, publicado entre nós como ""interpretação e Sobreinterpretação" e, mais tarde, "Os limites da interpretação". Dito isto, sim, é óbvio que as lições aprendidas pela história da montagem/sutura, no cinema, fazem todo o sentido, mas nessa discussão e aprendizagem, seria interessante estudar autores ainda mais radicais, como os Straub-Huillet, ou a panóplia de filmes que exploram essas relações. Os Davides, como dizes, são exemplos interessantes, mas eu diria que trabalham mais ao nível do ataque à diegese, sem porém a abandonar totalmente.
Neste espaço, já tive a oportunidade de falar de várias bandas desenhadas que bebem da recombinação: o Pedro Franz com um dos episódios de "Promessas de Amor", Joana Figueiredo com "Post-Shit", a obra de Jess, e até o Marco Mendes nas suas várias formas de edição/reedição (e o Ware é um óptimo exemplo,sim). Porém, aqui estamos a um nível de exigência da materialidade das imagens que é algo diferente do "agenciamento" da própria diegese, e esse ligeiro abuso de interpretação da parte dos leitores...
Isto tudo para depois desembocar precisamente nas relaçõs da re-leitura, que se pode alterar por tantos, tantos factores: começando pela idade/maturidade, conhecimento, novas relações intertextuais, etc. Ou até, mais importante aqui, um simples debate, que nos pode obrigar a reler e repensar...
Obrigado.
Pedro