18 de dezembro de 2015

Com 3 Novelos (O mundo dá muitas voltas). Henriqueta Cristina e Yara Kono (Planeta Tangerina)

A produção de livros ilustrados, sobretudo aqueles que se dirigem em especial, mas não exclusivamente, a um público infantil, em Portugal, tem conhecido nos últimos anos, como se sabe, uma curva ascendente no que diz respeito à sua qualidade global. Há uma cultura visual que se tem tornado cada vez mais premente, uma dedicação ao burilar do texto atenta às várias dimensões sociais complexas da contemporaneidade, alianças mais cuidada entre texto e imagem ou à articulação das imagens na sua possibilidade de leitura, a materialidade dos próprios livros, a coordenação de políticas editoriais e de colecções mais coerentes, assim como a fundação de uma cultura no seu pleno sentido. Se as condições de trabalho, profissionais e financeiras, se alteraram, imaginamos que com dificuldades ainda sentidas, em termos de recepção crítica e da fundação de uma “comunidade imaginária” apreciadora é garantida. E os balanços podem ser positivos, se seguirmos as atentas palavras e ideias críticas de Andreia Brites, no seu artigo “O perigo do eterno retorno”, na revista Blimunda (no. 32, de Janeiro deste ano). (Mais) 

É portanto nesse panorama colectivo que novos gestos podem surgir que, a um só tempo, não se diluem numa oferta variada, mostrando as suas anfractuosidades particulares, vívidas, salientes, e são por essa mesma oferta sustentados, considerando-o como cadinho cultural dialogante. Com efeito, não se podem considerar factores isolados para criar juízos de valor – um “bom desenho” (seja isso o que for), uma “boa história” (seja isso o que for) – e muito menos externos à obra (o autor é conhecido por x, esta colecção também tem y, é da editora z, etc.). Como diz Yolanda Reyes em “Como escolher boa literatura para crianças?”, a questão não é não haver uma boa e final resposta para essa pergunta, mas sim o facto de não haver “receita”. Isto é, o factor que determina o que é um bom ou mau projecto arrolará vários factores que nascem, porventura, nas idiossincrasias do próprio leitor (ou ouvinte), passando pelo quadro ético e social dos pais ou responsáveis pela criança, que ditarão, pelo menos em parte, a Weltanschauung na qual querem que o seu filho cresça e pela qual se oriente, a todos os outros intervenientes da sociabilização (família alargada, amigos, escola, mediasfera, sociedade em geral), e, finalmente, pelo pólo de produção que leva à emergência do livro em si.

Tudo isto para dizer que são necessárias por vezes todas essas condições se alastrarem para até mesmo se permitir que emerja um livro da natureza de Com três novelos (o mundo dá muitas voltas). Todas as suas características materiais e editoriais apontam para que se trate de um livro para a infância: é um álbum ilustrado publicado pela Planeta Tangerina, desenhado por Yara Kono, o texto é apresentado de modo sumário em cada página, a concentração de personagens é grande, a retórica simples e dirigida. Mas ao mesmo tempo é um livro cujo alcance político, social, humano, ultrapassa essas “limitações genéricas”, que muitas vezes servem de baias a leitores apressados, que passam a julgar os livros por ideias feitas, enquadramentos também eles genéricos, ou também aos leitores “fãs”, que as mais das vezes apenas repetem abordagens superficiais de emoções e sensações igualmente preconcebidas (“estilo inconfundível”, “uma história incomparável”, “sensibilidade magnífica”, “uma obra para todas as idades” e outras frases de circunstância válida para alhos e bugalhos).

Aparentemente, Com 3 novelos é um livro contado na primeira pessoa, de alguém que se recorda da sua infância, e cujos pais se viram obrigados a partir de um país oprimido por problemas para um outro, de língua e cultura diferentes. Se certas realidades se alteram imediatamente – no novo país, “todos os meninos vão à escola” e a ruga da testa do pai desaparece -, outras lentamente começam a parecer-se, a ganhar um mesmo valor de opressão – há uma monotonia cinzenta no país que os acolhe, uma uniformidade qualquer que dá a entender certos princípios preocupantes, ao ponto da ruga, mesmo que pequena, regressar.

Tudo é apresentado de um modo bastante oblíquo, elíptico. É certo que uma nota editorial no final do volume aponta uma série de pistas (“Baseada em factos reais”, etc.), datas e países, associando a primeira pessoa do livro a uma história vivida, a uma memória real e transmissível, mas até que ponto é-nos permitido lançar uma leitura autobiográfica num livro que não contêm os elementos que a isso permite? Ou melhor, tudo é feito precisamente para que se possa fazer uma leitura dupla (ou tripla), entendendo-o tanto como uma autobiografia individual, como uma máquina desejante na qual se poderiam espelhar as experiências de centenas de famílias, experiências que, se em Portugal corresponderão a uma geração passada que ainda poderá estar em contacto com os mais jovens, noutros locais poderá estar, ainda, em curso. Daí que não haja uso de nomes próprios, pormenores da vida familiar, circunstâncias específicas, mas uma apresentação sumária da situação e dos agentes, para que se possa imaginar uma maior completude da parte dos leitores.

A nota a que nos referimos fala sucintamente das realidades oprimidas do Portugal de Salazar e da Checoslováquia após a sua Primavera de 1968, precisamente mostrando que para atingir Primaveras e Liberdades (duas palavras-chave no livro), é preciso, como diz o título “muitas voltas”.

O leitmotiv que vai tomar a centralidade no livro é a do tricot. Confrontada a família no “novo país” com uma paleta extremamente reduzida de camisolas em malha monocromáticas – laranjas, verdes e cinzentas -, a mãe decide (depois de fazer tranças à filha, e descobrindo nesses gestos de entrelaçamento de três “molhos” que algo de novo pode despontar) re-tricotar novas camisolas a partir das existentes. A partir desse momento o texto assume toda uma série de jogos de repetição e variação de termos técnicos (“pontos de malha”, “meia-liga”, “ponto-de-arroz” e, uma espécie de refrão em acção, “agulha-vai agulha-vem”) para dar a entender uma incessante e complexa operação de desfazer e refazer malhas, de entrelaçamento dos novelos de cores, para fazer surgir camisolas com os mais variados padrões.

Mas para além da história imediata, podemos dizer que é como se este livro falasse de um esforço de democratizar por dentro. Há uma certa alegria de estar num novo país, que será certamente visto melhor do que aquele de que se viu obrigada a fugir: há aí mais espaço, literalmente mas também no sentido de convidar à acção. Mas esta não parece ser suficiente ou suficientemente variada, e então é aí que o gesto de tricotar, com os elementos existentes (e isto é importantíssimo), se torna esse acto de expansão, de democratização. O próprio acto, no seu aspecto técnico – a colaboração de duas agulhas coordenadas, a convergência de novelos diferentes para criar uma tessitura unidade e coesa, etc. – poderá ser lida como uma metáfora desse esforço. Aliás, corroborado pelo facto de que o tricotar rapidamente passa a outras mãos: nos spreads finais, não é apenas a mãe da protagonista que tricota, mas outras mães, pais, jovens, e crianças a brincar com os novelos de lã e as agulhas. O resultado, a partir das três monótonas cores, são cruzamentos extremamente variados, dos mais simples aos mais minuciosos e intricados, levando a uma variedade que anuncia a coincidente Primavera.

Como seria de esperar, esta história não se esgota na sua matéria verbal. As imagens confirmam o texto mas vão mais além ou dão-lhe uma padronização vívida. As guardas preparam a explosão de cor, ou das três cores (mais preto), mesmo que sejam esbatidas, sóbrias. A folha de título prepara “as armas”. E todas as imagens são compostas ou atravessadas por padrões – pontinhos, linhas paralelas, cruzes em quadradinhos, linhas picotadas, quadriculados, combinações de letras tipográficas para criar padrões – que recordarão os esquemas de ponto. As figuras humanas, mas também os objectos, têm uma qualidade de combinação das formas que recorda os papéis recortados, as manchas separadas de serigrafia ou os carimbos, em que cada membro, tronco, cabeça, parece ter sido construído solitariamente e depois combinado para a formar. Isto traz uma qualidade lúdica às formas que não apenas combina com o tom “infantil” da narrativa, como espelha em parte a combinatória do seu tema. Alguns apontamentos, claríssimos, de colagem (quer de material “encontrado” quer de elementos gráficos criados pela própria) aumentam esse grau de dimensionalidade. 

Yaka Kono, além disso, tira partido igualmente da variedade possível da composições de páginas para incutir uma dinâmica não-homogénea à narrativa: existem spreads mas igualmente divisões em vários quadros, existem muitos planos de conjunto, quer de panoramas urbanos quer de espaços públicos cheios de personagens, mas também instâncias drásticas de planos aproximados, que não apenas interrompem a acção como sublinham os momentos de maior introspecção emocional ou reflexão, antes de uma decisão. Que é, enfim, o âmago de toda a saga familiar da protagonista, mesmo que não explícito: uma decisão de fazer, mexer, partir, e viver.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. 

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