14 de janeiro de 2016

Nanjing: The Burning City. Ethan Young (Dark Horse)

A intriga deste livro está tão enclausurada quanto os soldados que acompanhamos: o Capitão (cujo nome jamais diz, nem confessa quando é capturado, tornando-o uma cifra para muitos dos heróis da guerra) e o soldado raso Lu, na cidade derrubada de Nanquim ou Nanjing. Estamos no final de 1937, no auge da 2ª Guerra Sino-Japonesa (que desagua, qual rio, no oceano da 2º Grande Guerra). A cidade já foi bombardeada severamente pela aviação japonesa, uma sua parte foi tornada uma “zona segura” para refugiados civis e estrangeiros (sobretudo os ocidentais que haviam igualmente contribuído para minar a própria estrutura económica e social da China desde o século XIX), e a infantaria japonesa procede a um saque, morticínio e violações em massa tão atroz (apesar do negacionismo japonês até à data), que todo o episódio é conhecido muitas vezes por “A violação de Nanquim”. É portanto na paisagem dessa barbárie e desolação, e no colapso e abandono total pelas chefias e organização militar da cidade, que o Capitão e Lu se encontram isolados, e tentam escapar, conquistando a passagem rua a rua, da cidade e dos perigos que os esperam às mãos dos militares japoneses. (Mais) 

Nanjing parece servir que nem uma luva todo um conjunto de livros que têm surgido nos últimos anos das segundas ou terceiras gerações de emigrantes de países asiáticos (japoneses, chineses e coreanos) nos Estados Unidos da América que, abraçando todos os instrumentos que lhes são acessíveis nesse país, lhes permite reconectar com as suas raízes familiares e culturais. Adicionalmente, é um momento flexível e aberto a projectos de banda desenhada aberta a temas históricos mais difíceis, dolorosos e dirigidos a um público mais diversificado, se bem que Nanjing não possa ser descrito de forma alguma como uma “YA GN”, como a obra de Gene Luen Yang, por exemplo.

O périplo dos dois militares chineses é feito, como dissemos, a cada dobrar de esquina. Se a perspectiva visual é clássica, vendo o espectador as personagens, a focalização é por eles dirigida. Mesmo com o uso exímio de tramas, pretos, cinzentos, silhuetas, planos inclinados, as vinhetas enquadram-se sempre em torno dos corpos ou rostos das personagens, não se abrindo em panoramas arejados e abrangentes. Se se cruzam com outras personagens chinesas, já mortas ou vivas, estas são quase sempre vitimizadas por soldados japoneses, obrigando os protagonistas a protegerem-se atrás de um muro ou de escombros. Se se ocultam numa casa, procuram que as trevas lhes sirvam de protecção. O acto de testemunha e de desespero é assim partilhado pelos militares, tornando-os humanos, e não figuras épicas capazes de escapar a essa condição humilde.

Essa “escala humana”, que discutivelmente foi popularizada por Harvey Kurtzman nas suas histórias de guerra na década de 1950, está então patente na maneira como o autor compõe essas suas imagens. Com raríssimas excepções em momentos de articulação supra-narrativa (a introdução com um establishing shot, um “intervalo” na acção na única noite dormida pelo Capitão, a sua entrada, capturado, na zona segura, e o último afastamento dramático), as vinhetas estão sempre ao nível das ruas, em planos médios e aproximados das personagens, não se permitindo uma perspectiva acima da das personagens.

Essa escala humana também tem repercussões na representação e sua relação com a ética. Não se pense, portanto, que os japoneses são representados somente como facínoras comutáveis e animalescos. Estamos longe de qualquer estereotipificação ou maniqueísmo. Um dos soldados japoneses, numa das patrulhas, tem mesmo oportunidade de nos mostrar que não quer participar de nenhum dos abusos brutais dos seus camaradas. Isso não o salvará porém da vingança dos protagonistas, depois de matarem todos os outros. O coronel japonês que captura o Capitão (cujo nome, numa imagem especular invertida, também acaba por não conseguir dizer, pois o capitão chinês não quer saber, acreditando - uma crença partilhada por todo o livro, dedicado aos “esquecidos” – que os nomes retêm uma importância inalienável), pode numa primeira instância surgir como o protótipo do “oficial honrado”, que quer seguir a conduta militar acima das paixões, mas revelar-se-á ainda mais maquiavélico pela forma como se aproveita da situação para manipular todos aos seus propósitos. Esse abuso derradeiro, de resto, é aquilo que permite trazer depois a dimensão mais heróica ao livro e ao protagonista, já que o capitão chinês se recusa a colaborar e acaba, fora de cena, por pagar o preço da sua honradez. Cena expectável, nota de espectacularidade e tragédia numa narrativa que, até ali, parecia pautar-se pelo mais obediente dos realismos. Não é de surpreender, porém, que o autor pretenda mostrar que na mais abjecta das amarguras provocadas pela guerra, haverá uma espécie de espírito indomável e indobrável chinês. É sua prerrogativa. 

Em termos figurativos, muitos outros leitores têm apontado nomes tais como os de Milton Caniff ou de Joe Kubert, o que não é despropositado dada a procura da exactidão nos jogos de claros e escuros, na forma como os negros e as texturas das tramas servem para criar zonas de indecisão, perigo e “peso”. Mas estamos em crer que pela estilização dos rostos e das figuras, ligeiramente mais simplificados e arredondados, suaves, estariam numa linha que foi inaugurada, novamente, por Kurtzman enquanto desenhador, e destilada até à máxima elegância por Alex Toth, tendo em Darwyn Cooke um dos seus cultores contemporâneos (outras das comparações já feitas com Young). Há também um equilíbrio entre uma abordagem realista (nos cenários e objectos) contra uma maior estilização dos corpos que o aproxima de questões discutidas sobre Shigeru Mizuki, uma das citações bibliográficas de Young. Sobretudo a cena inicial, de uma dezena de páginas tensas e “silenciosas”, aproxima o autor de toda uma vetusta tradição de banda desenhada de guerra, noir, séria, que cria uma imediatez do tom que depois manterá com as personagens em cena.

Sendo o autor descendente de chineses, e sendo o livro sobre chineses (e japoneses), há uma economia de representação e focalização que se centra na população autóctone. Mesmo assim, o autor sente a necessidade de colocar em cena, num momento final e breve, uma personagem ocidental, que ocupa um papel de preponderância social e até algum destaque na zona segura, mas sem que as questões centrais acabem por lhe dar um peso definidor do episódio. Algo bem distinto do filme Flowers of War, também passado no mesmo enquadramento, mas onde é a figura da personagem americana (desempenhada por Christian Bale) que acaba por ter o maior peso e agência de toda a narrativa. Em contraste, The Burning City recoloca a tónica da importância da agência, quer a negativa quer a positiva (a cobardia, a fuga, a barbárie, a empatia, a honradez), do lado dos intervenientes directos, sem a necessidade de criar uma figura de identificação “neutra” (que dizer, nunca é neutra, mas apenas “disfarçada”, por melhor corresponder a um certo modelo de representação). Aí, também esta obra do jovem autor revela uma grande inteligência ética. 

Nota final: acesso a ficheiro pdf via The Comics Alternative; imagens colhidas na internet. 

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