9 de abril de 2016

Industrial Revolution and World War. Shintaro Kago (UDWFG)

Este será um brevíssimo texto sobre este pequeno álbum do autor japonês, que tem a particularidade de ser um nome conhecido e admirado entre os leitores de scanlations (isto é, edições “piratas” acessíveis na internet, com traduções e edições amadoras, o que não significa necessariamente com qualidade menor), mas cuja circulação por edições comercialmente acessíveis é bem menor. Na verdade, esta edição, da italiana Hollow Press/UDWFG, que se dedica a uma linha negra da criação de banda desenhada (horror, críptico, gótico, monstruoso, etc., e a que regressaremos em breve quando falarmos da revista homónima), é a primeira em língua inglesa a solo (história curtas haviam sido publicadas, como “Punctures”, em Secret Comics Japan, da Viz, em 2000) após alguns títulos de Kago em francês. (Mais)

Se Suehiro Maruo é o autor que introduziu no Ocidente uma certa elegância e sofisticação no estilo conhecido por “ero guro”, ou “eortismo grotesco”, Kago parece querer retirar toda a possibilidade de redenção estética, filosófica ou narrativa a esse mesmo território. Quer dizer, o trabalho de Maruo, mesmo quando envolvia episódios macabros ou radicais no que diz respeito ao sexo, quer sempre que esses elementos surjam como um limite ultrapassado que estilhaça um certo grau de hipocrisia social, papéis normativos, expectativas históricas. Que no cinema japonês terá sido tentado por autores tais como Hiroshi Teshigahara (A mulher nas dunas), Yasuzo Masumura (Blind Beast) e Nagisa Oshima (Império dos sentidos). Kago, por seu lado, abandona-se num humor quase abjecto, infantil, nas transformações e episódios que propõe, e por isso atinge graus de desconforto maiores. Pessoalmente, a leitura da sua história curta “Suck It” é ainda uma das mais repugnantes alguma vez cumpridas.

O autor é conhecido por dezenas de histórias curtas que envolvem, por vezes ao mesmo tempo, cenas de sexo explícito e extremo, escatologia, e corpos humanos torturados em formas maquinais fantásticas, o que o alia sobremaneira a outro mestre do horror “biológico” contemporâneo do Japão, Junji Ito (e, em menor grau, Hitoshui Iwaaki). Mas se Ito insiste sobretudo em dimensões orgânicas, a abordagem de Kago pauta-se pela inclusão da tecnologia. Industrial Revolution não é diferente. Tratando-se de uma história curta, e sem matéria verbal, começamos no que parece ser um campo de “funny animals”, em que pequenas criaturas antropomórficas parecidas com roedores, e kawai, se depararão com o que parecem ser corpos de adolescentes humanas, numa escala imensa, e aproveitar-se-ão desses corpos, como peças, e cruzando-as com peças verdadeiramente maquinais, para desenvolver toda uma nova civilização. Essa seria a parte correspondente a “Industrial Revolution”.

Este aspecto de absoluta e abjecta objectificação dos corpos humanos (mormente de adolescentes humanas) recordará algumas das estratégias de outro autor japonês,  Usamaru Furuya. Mais uma vez, onde Furuya emprega humor, que “doura a pílula” do horror demonstrado, Kago é mais directo e sem contornos facilitadores. Daí que a segunda parte se lance directamente num conflito, com uma outra espécie, aparentada a insectos, invada a civilização dos roedores com a sua própria maquinaria, até ao ponto de vermos cenas de holocausto e mortandade horrenda, e cujo ápice é o combate inexorável apenas entre as máquinas-humanas.

É possível que fazer alguma interpretação mais profunda destes corpos alterados à luz da teoria dos ciborgues, do pós-humano de Haraway, ou até mesmo da ideia dos corpos-sem-órgãos e as máquinas celibatárias/de guerra de Deleuze e Guattari , daria azo a um excelente ensaio, descobrindo a forma como Kago ausculta os mais negros e indizíveis desejos no nexo da carne, da tecnologia, e da sociedade de consumo. Todavia, este livro em particular, se bem que se possa aliar nessas linhas a toda a obra do autor, é um conto breve e simples.

Até mesmo a forma de compor as páginas é relativamente convencional, tendo em conta algumas das incríveis formas que Kago experimentou para criar narrativas mais complexas. De novo, “Suck it” apresenta-se de uma forma curiosa, documental, e “Abstraction” é um tour de force maior que deveria estar na linha da frente de qualquer consideração sobre banda desenhada experimental e que pensa profundamente a sua própria estrutura e ontologia. Mas Industrial Revolution and World War é presentada de forma inequívoca, sem rodeios. 

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