31 de maio de 2016

Uptight # 5. Jordan Crane (Fantagraphics)

Quando falámos do primeiro número deste comic book de Crane, havia uma sensação de não apenas ter chegado tarde a um ciclo deste tipo de publicações pela parte dos grandes nomes da banda desenhada indie dos anos 1990, como se entendia que, seja como for, haveria uma forma de trabalhar algo distinta. Passados dez anos, a existência de apenas mais quatro número da mesma publicação – e outros projectos pelo meio, sobretudo livros – leva de facto à confirmação que Crane procura manter menos viva a ideia de um número anual (ou mesmo “annual”, como se diz nos Estados Unidos a números especiais e maiores de um título), como é praticado por Adrien Tomine e Seth, do que simplesmente deixar em aberto um veículo à sua produção quando pronta... (Mais) 

Outra das fórmulas que se têm mantido é a por vezes quase indistinção entre uma história e outra. Quer dizer, não existem separadores claros ou os títulos trabalhados não estão logo ao início formando uma barreira cognitiva necessária à leitura. Pode muito bem acontecer que entremos num novo território narrativo sem a certeza de ter abandonado o anterior. Mas este tipo de desordem, mesmo que momentânea, parece ser um efeito desejado pela própria estrutura das histórias, como veremos. Uptight é uma espécie de antologia one man show, em que o autor publica histórias curtas e auto-conclusivas, alternadas com episódios multifacetados mas de projectos maiores ou capítulos de uma narrativa que se adivinha, no futuro, a poder compor uma obra maior. Este último caso é claríssimo ser aquele garantido por “Keeping Two”, que continua desde o primeiro número (e de antes mesmo). Uma vez que o tempo se estendeu entre o quarto número de Uptight e este, o autor acabou por reunir mais material, de forma a ter publicado uma revista de mais de 100 páginas, recordando um outro formato americano (mais propriamente da DC), o “80-page giant”... Por isso, além de um novo capítulo desse trabalho mais estendido, temos ainda mais três histórias, tudo levando a crer serem curtas fechadas. Parte dessa ideia é sustentada pelo facto de Crane ter publicado duas das histórias neste número em pequenas auto-edições limitadas.

Uma vez que há mais páginas, não deixa de ser surpreendente que “Keeping Two” tenha mais de cinquenta pranchas nesta edição. A paranóica espera do protagonista pelo regresso da namorada, que vai sucessivamente imaginando ter sofridos os mais díspares acidentes ou catástrofes, continua, interrompendo o fluxo normal da sua experiência vivida. Ainda que haja escolhas visualmente claras na separação entre “vida real” e “imaginação” pelo uso ou ausência de molduras nas vinhetas – de pranchas regularíssimas, numa grelha de 2 x 3 – a sua flutuação é tão rápida que uma sensação confusa de travessias inconclusivas é natural. Recordações, elas próprias aceleradas, projecções num futuro hipotético auto-complacente, momentos de reflexão, transformadas numa curiosa mistura entre deslocação espacial e stasis temporal graças a uma faixa verbal introspectiva, e ainda uma interrupção por um nível hipodiegético adicional por penetrarmos na leitura que o protagonista faz (e que por sua vez apresenta cenários hipotéticos, um mais dramático que o outro, e que poderá espelhar a história do “nosso” protagonista de várias maneiras), tudo isto cria uma estrutura por camadas cuja navegação apenas se deve fazer com a máxima atenção e possivelmente regressos e releituras. Estamos seguros que quando existir em livro, angariando uma atenção maior crítica, que Keeping Two será visto como um tour de force narrativo, sobre os perigosos devaneos a que a solidão convida.

As outras três histórias estão unidas por linhas temáticas: de uma maneira ou outra, os protagonistas dessas histórias encontram-se presos num qualquer espaço, do qual não há escapatória, esperando um qualquer fim terrível. O próprio Crane descreve tudo como “histórias onde coisas horríveis acontecem”. “Wake Up” é uma espécie de pesadelo circular e auto-destrutivo de uma mulher, com cerca de 8 páginas (dependendo de como contamos as pranchas a negro). “The Dark Nothing” é uma história de ficção científica, de 24 páginas, com grandes preocupações sólidas de worldbuilding mas para se concentrar num acidente de mineração. “The Middle Nowhere” (é mesmo assim), de quase trinta páginas, mostra igualmente um acidente, em que um homem que trata de uma torre de comunicações isolada cai ao mar e é atacado por uma criatura fantástica, uma espécie de mulher-polvo. A que grau de realidade pertencerá esse confronto, ficará ao leitor a responsabilidade de negociar.

Jordan Crane demonstra nestas páginas, também, a sua capacidade de adaptação do trabalho de linha e coloração (ou trabalho em cinzentos, melhor dizendo) conforme os registos desejados. O seu treino em serigrafias ou separação de manchas é notável mesmo quando trabalha apenas a preto ou gradações de cinzentos. Se “Keeping Two” se mantém no seu estilo-assinatura de figuras muito estilizadas, sumárias mas com pequenos pormenores que assinalam o seu realismo, “Wake Up” parece querer demonstrar uma maior proficuidade no detalhe naturalista, sobretudo no que diz respeito aos corpos das personagens, já para não falar de estratégias bem diversas de composição de página e de vinhetas, dramatismo, etc. Mas acima de tudo, estão os sólidos negros dos quais mal escapam manchas brancas, que demonstram como Crane pode ser um artista exímio no chiaroscuro como muitos dos seus mais famosos cultores. “The Dark Nothing” regressa a uma abordagem mais limpa e suave, que tira partido de uma composição mais respirada, com poucas vinhetas por página, levando a um ritmo mais rápido da acção mas ao mesmo tempo a possibilidade de imagens mais alargadas e pausadas, como convém ao que se passa no espaço. O uso das gradações de cinzentos também é usada de maneira a construir as formas, e não somente para lhes dar textura e dimensão, mostrando mais outra dimensão no trabalho de Crane. Finalmente, “The Middle Nowhere” mantém-se na sua abordagem estilizada-naturalista, mas emprega halftones e altos-contrastes para criar as estruturas de luz e formas de que vai precisando.

Com a excepção dos episódios com Simon e Jack, as personagens da saga infantil Clouds Above, todo o material de Uptight tinha um ambiente sombrio, melancólico, mas com a ausência dessa nota leve, e com o tamanho das histórias, neste número, esse ambiente é ainda mais reforçado. Apenas a última história se poderá compreender como terminando “bem”, se for esse o caso... Mas é precisamente esse jogo entre episódios melancólicos, paranóicos, de isolamento e visões, em que as personagens acabam por ser ver abandonadas com os seus próprios pensamentos, e face ao silêncio ou ausência dos outros, que mais revelam a fragilidade intrínseca aos humanos...

Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio da publicação em formato digital.  

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