21 de junho de 2016

Desolation.Exe. Berliac (Low Spirits)

Este pequeno fanzine do autor argentino reúne cinco histórias que o autor havia divulgado nas mais díspares publicações durante o ano de 2015, entre as quais a Kus! e a Kovra # 6, de que falámos na altura. Diferentemente de Playground, que tivemos também a oportunidade de ler com atenção, e que se revestia de uma forma mais clara por interesses que têm a ver com a expansão das capacidades estéticas, políticas e teóricas da banda desenhada, esta antologia agrega uma espécie de procura e criação sob o signo, quase obsessivo, de uma certa banda desenhada japonesa dos anos 1960 e 1970 veiculada pela Garo. (Mais) 

Com efeito, o estilo visual de Berliac tem-se transformado cada vez mais sob alguns dos mais típicos desígnios da mangá. Quer em termos de composição, com muitas vinhetas silenciosas contribuindo para a densificação dos ambientes, o uso de tramas, quer em termos de figuração, ultra-estilizada, sobretudo algo entre Yuchi Yokoyama e Seiichi Hayashi, mas igualmente no que diz respeito à economia narrativa e a certos tropos. 

Das cinco histórias desta publicação, duas têm informações contextuais que as podem colocar na América Latina (uma no México, de modo explícito), mas as outras tanto poderiam ser na Argentina como no Japão, já que ou são deslocadas o suficiente ou partilham elementos que nos colocariam em ambos os locais. Uma das histórias localizadas, por exemplo, mostra lojas de empanadas mas também salões de jogos de casino electrónicos que nos recordariam os panchinko parlors. Outra mostra o que parecem ser membros de uma yakuza a perseguirem um jovem numa mota, remetendo ao cinema dos rebeldes anos 1960 do Japão, ou até cenas quase recuperadas de filmes de Takeshi Kitano, mas criando uma intriga tão intensa quanto patética que se encaixaria em qualquer sociedade do primeiro mundo.

Se há algo de comum nestas histórias, terá a ver com uma certa crítica para com uma conformação social assegurada pelo conforto burguês e os seus princípios normativos. O emprego, o lazer, os padrões de beleza, a exploração animal, a aculturação pelo turismo, são apenas alguns dos temas que poderiam ser sublinhados na leitura destas histórias. A maior parte das personagens, em tão curtas histórias, são por vezes apenas debuxadas para cumprir o papel que lhes cumpre, mas aquela que havia saído na Kovra, intitulada “Patterns”, é particularmente comovente e profunda, sobre duas irmãs de personalidades bem diferentes e vincadas.

Todas elas remetem àquela angústia urbana pós-industrial que autores como Hayashi, mas também os irmãos Tsuge, Abe, Matsumoto e Tatsumi exploram nas suas obras, entre outros. Histórias de um realismo chão, dramático (até para aproximar ao significado etimológico de “gekigá”), atento à via que escapa por entre as frestas da fortuna económica e social, e que assim alertam a que as formas de felicidade possíveis não são de forma alguma universal. Daí talvez que o título, com a sua extensão de “.exe”, remeta a algo que pode exercer uma acção sobre a “vida” do programa. Neste caso, a desolação da pobreza, da alienação do trabalho, das obsessões por uma certa cultura do prazer superficial, do isolamento humano.

Este é um caso claríssimo de absorção completa de uma influência para trabalhar esse mesmo território – poder-se-ia falar até de exorcismo, através do exercício da influência? É como se Berliac vestisse a pele de uma autor de gekigá para compreender que tipo de narrativas poderia cumprir. Aqui temos cinco casos.

Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta da publicação, que nos foi entregue por P.F.

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