8 de junho de 2016

Mate minha mãe. Jules Feiffer (Quadrinhos na Cia.)

A publicação deste título deveria ter sido uma ocasião de maior atenção. Jules Feiffer é, afinal de contas, um dos nomes importantes enquanto percursor da ideia de pensar a banda desenhada como um veículo passível da discussão de temas e histórias com repercussões emotivas, intelectuais e políticas de modo tão intenso e genuíno como qualquer outra linguagem artística. Não deixando jamais de ter sido um fã dos clássicos norte-americanos (é seu o influente e percursor ensaio The Great Comic Book Heroes), ter sido aprendiz e “fantasma” de Eisner em The Spirit, Feiffer construiria a sua fama como escritor (mesmo que com imagens ou por elas), capaz de navegar as estranhas águas das relações humanas, das suas fantasias e irrequietudes, angústias e capacidade de subversão em relação à moralidade vigente, produzindo livros de aparência infantil (Tantrum, Passionella), tiras de banda desenhada (que publicou no The Village Voice, coligidos em The Explainers), o filme de animação Munro, e filmes tais como Carnal Knowledge, de Mike Nichols, e I Want to Go Home, de Alain Resnais. (Mais) 

Não deixa de ser surpreendente, mas ao mesmo tempo natural, então, que numa idade madura, Feiffer deseje registar o seu fascínio com fantasmas da sua juventude, dedicando-se neste livro à lavra de uma intriga noir, digna do mais rocambolesco filme dos anos 1930, à la Sternberg ou Clouzot.

Usualmente, as intrigas do noir envolvem um detective duro e acostumado às agruras do mais forte álcool e uma mulher fatale. No caso de Kill my mother, porém, a ideia do cherchez la femme acaba por vir a desembocar em cinco figuras femininas (que ainda se desdobram). Compreender-se-á então que Feiffer constrói uma intricada e apertada malha de reflexos, confusões, becos sem saída, identidades disfarçadas, enigmas e revelações que se estendem uma década, iniciando-se em 1933, quase no fim da infância de uma das protagonistas, Annie Hannigan, até 1943, quando todos os pontos que haviam ficado por se resolver então caem no seu ponto certo. Ou bem pelo contrário, errado. O título da obra é o mais directo possível, uma vez que Annie alimenta uma fantasia, demasiado recorrente para ser vista somente como um desabafo inconsciente, de matar, ou de ter alguém que o faça por ela, a mãe Elsie Hannigan. A relação entre mãe e filha nasce desde logo de um mal-entendido, que nenhuma das duas parece ser capaz de desfazer através do diálogo, e apenas piora ao longo dos anos, tornando a situação irresolúvel. Elsie, por sua vez, está a trabalhar como secretária de um detective, Neil Hammond, que foi colega do seu marido morto, esperando que ele resolva a questão do assassinato dele. Uma das clientes deste detective, Mae Longo, no grande cliché do policial, é quem introduz a segunda trama, envolvendo uma irmã desaparecida, Patty, mas que não revela ser sua irmã. E que trazem no conflito que as opõem outra maquinaria edipiana.

Estas duas polarizações entre os pares de mulheres têm, cada qual, outros personagens associados, de antigos amigos e namorados, aliados e inimigos, que tornam a geometria das relações complexa e com arestas que se vão arranhando ao longo do livro, envolvendo a indústria de Hollywood, os conflitos na 2ª Guerra Mundial no pacífico e os bas-fond dos bares de jazz em Nova Iorque. Pois uma outra figura feminina central, uma espécie de eixo dos eventos, é a misteriosa cantora conhecida como “Dama do Véu”...

A comédia de enganos que se segue, os segredos por revelar, a forma como a trama se revela, não é em si totalmente inesperada ou original. Uma dieta regular de hard boiled, whodunnits e noirs terão criado uma habituação a estas reviravoltas, e estando nós na contemporaneidade, não admira igualmente que Feiffer explore temas que, na altura, seriam tabu (a sexualidade, desmontagens metatextuais das indústrias culturais, contornos histórico-políticos, etc.). Mas é a destreza com que Feiffer joga os eventos entre si, que baralha as personagens mais mais díspares configurações de relações e os excelentes e rápidos e espirituosos diálogos que o autor revela as suas maiores forças, mesmo que de quando em vez com contornos de algum melodramatismo (quase musical, apetece dizer).
Jules Feiffer faz também parte de uma longa, complexa e variada constelação de criadores que contribuíram para o advento daquilo que viria a ser reconhecido como o “humor judeu nova-iorquino” (contando-e com Lenny Bruce, Mel Brooks, Woody Allen e Seinfeld), sendo ele um dos seus primeiros cultores, na verdade. Essa veia não é explorada aqui de forma directa, já que o cinismo, estando presente, não serve para melhor sustentar o humor, mas tampouco escancara uma realidade demasiado melancólica ou negra. Estará mais presente na delivery dos diálogos, ou em pormenores, do que na massa central.

As imagens são lavradas do modo gestual e célere conhecido de Feiffer. Mas se nas suas tiras, como no caso de The Explainers, apresentam figuras constituídas de linhas tão finas e conturbadas quanto a escrita, as marcas gráficas elas mesmas, do autor, Mate minha mãe apresenta outro tipo de abordagem mais texturada. Existem aguadas, aguarelas, tinta branca, criando uma ténue camada de cor (cinzentos, castanhos e ocres deslavados, ténues verdes e azuis) que apenas vai surgindo parcimoniosamente para servir de nota dissonante ao noir da esmagadora maioria das páginas.

Algumas das composições de Feiffer recordam, sem dúvida, a sua prática de anos de criação de tiras sem o uso de molduras. Se bem que existam páginas com vinhetas bem demarcadas com a mais fina linha recta, mas de forma algo desopilada, existem muitas outras em que não se emprega separação entre as vinhetas senão um pequeno, breve intervalo de espaço em branco, por vezes ocupado com outros objectos, tirando partido do cenário, ou havendo mesmo sobreposições dos corpos nos seus vários momentos. Isso provoca uma espécie de fluidez imediata entre os movimentos, nalguns casos a ideia de estarmos a observar uma animação ininterrupta. Falamos de cenários, mas quase se contam pelos dedos as vinhetas em que surge uma cena de um exterior, em maior ou menor plano, ou interior, espraiando algum pormenor. Serve de establishing shot a toda uma série de sequências em que as personagens se movem e comovem em vinhetas “vazias”. Enfim, se podemos falar de noir do ponto de vista do assunto de Mate minha mãe, em termos visuais estamos longe do naturalismo poético de um Eisner ou de um chiaroscuro à la Caniff. A expressividade de Feiffer não é a de uma imitação (subordinado) ao efeito do cinema, mas antes uma urgência própria do acto do desenho em si.

No entanto, existem escolhos, e bastante graves. Uma vez que o autor recorre a modos de figuração relativamente simplificados, torna-se por vezes difícil, se não mesmo impossível, de distinguir as figuras femininas entre si, que partilham demasiados traços físicos comuns: figuras esbeltas, esguias e ossudas, cabelos claros ondulados e curtos, e um sentido de moda que não é suficientemente distinto. É necessária uma atenção particular para com o contexto, ou mínimos sinais diferenciadores para conseguir atribuir os papéis a cada personagem. Por exemplo, no diálogo no avião entre Annie a a sua mãe Elsie, se não fosse o traço singular de ruga do rosto da mulher mais velha, era quase difícil diferenciá-las... Numa intriga em que os papéis, ilusões e comédia de erros é central, essa difícil destrinça traz uma camada de dificuldade que não é bem-vinda.

Tendo em conta a verve literária e humana de Feiffer, e as suas maravilhosas capacidades de, com um estranho novelo de linhas, criar modos de expressividade gráfica que o torna uma das maiores referências do cartoon norte-americano, é com alguma consternação que Mate minha mãe nos apresenta um novelo em que é menor a elegância que a densidade, mais forte a aspereza que a fluidez, e maior a entrega aos princípios dos géneros, mesmo que num claríssimo abandono feliz, do que o burilar a inteligência mais fria das suas possibilidades.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

Sem comentários: