30 de junho de 2016

Meteorologias. Diniz Conefrey (Quarto de Jade)

Diniz Conefrey, como já o havíamos dito noutra ocasião, é um autor que cultua sobremaneira a transposição da matéria do desenho para primeiro plano, e não somente o emprega como meio, veículo, transmissão de uma representação. O corolário dessa tarefa encontra-se, talvez, no momento em que a representação de dissolve totalmente no próprio acto da gestualidade dessa matéria, lavrando imagens abstractas. Se essa intensidade já se fazia prever em muitos dos seus trabalhos “de representação”, nas “margens” expressivas do programa central, quer na narrativa d'O livro dos dias quer nas adaptações de alguns contos de Herberto Helder, no seu encontro com o texto a máquina de emaranhar paisagens, desse mesmo poeta, libertou-se por completo. Agora, nas peças que perfazem este volume essa liberdade deu ainda outro passo, desfazendo-se de qualquer matéria verbal que não os títulos individuais das “histórias” ou a sua contextualização editorial, mas também por não perseguir qualquer outra forma velada de organização narrativa. (Mais) 

Quando falámos da antologia Abstract Comics, organizada por A. Molotiu, ou noutros momentos, discutimos a insistência, verdadeiro imperativo humano, em procurarmos organizações narrativas coerentes mesmo onde elas poderiam não estar presentes à primeira vista. Simon O'Sullivan, numa discussão sobre fotografia, considera a narração e a ilustração como fazendo parte da representação, apelidando-as de “formas de figuração”. Bebendo do conceito de desterritorialização, de G. Deleuze e F. Guattari, que sucintamente deve ser entendido como um estranhamento total e incategorizável de uma forma de expressão (neste contexto), O'Sullivan vê a figuração como sendo uma “posição errada” do figural, sendo a outra posição a da “desterritorialização absoluta da figura (um movimento em direcção à abstracção total)”. Quando lemos algumas das histórias de Abstract Comics ou o Bleu de Lewis Trondheim, e até mesmo no caso de abstracções puras e geométricas, começamos a olhar para as formas à procura de códigos que as organizem, isto é, e para empregar uma expressão de O'Sullivan, que passem pelo cérebro, em vez de algo que afecte directamente o sistema nervoso. Por outras palavras, toda e qualquer experimentação com a forma que possa tombar em categorias de resto familiares acabará por se re-territorializar.

É discutível se este trabalho de Diniz Conefrey é uma absoluta desterritorialização ou se, pelo contrário, permite alguma re-categorização e re-familiarização das suas formas. O livro tem quatro unidades, cada qual com o seu título: “Membrana fóssil”, “A matéria do vento”, “Pequenos mundos” e “Tornado a casa”. A própria subsunção a um título como Metereologias, e o cotejamento com os desenhos nas suas características gerais – pinceladas concêntricas, de linhas paralelas e sinuosas, dispersões de linhas em formas de volutas, dunas, ventos, quase-naturais, faria pensar numa espécie de projecto de representação figurativa de fenómenos e sistemas, e assim caíriamos em territórios familiares. Seria como se estivéssemos tão-somente perante os ambientes que um Mattoti cria para O homem à janela ou um Toppi ou Battaglia lançam para adensar as texturas das suas pranchas mas depois não viessem os restantes elementos naturalistas e propriamente narrativos. Se citamos esses nomes, é porque encontramos algumas afinidades de prática, mas não é só isso, se isso é, que se passam em Meteorologias.

O volume tem ainda um prólogo do investigador Aarnoud Rommens. Rommens está neste momento a preparar um volume dedicado ao campo da banda desenhada abstracta, coligindo ensaios originais e trabalhos de artistas. Se nos é permitido dizê-lo, um desses ensaios será nosso, recuperando algumas leituras em torno de 978 de Pascal Matthey e do trabalho de diceindustries, mas num enquadramento mais académico. Além disso, a abertura do projecto permitiu que se incluíssem trabalhos de autores portugueses, como é o caso preciso de Conefrey e ainda de Cátia Serrão. O prólogo faz uma leitura determinada e “mecânica”, por assim dizer, atento às especificidades das transições, esquema compositivo, ritmo, diferenças e repetições do trabalho das marcas gráficas, os níveis de manipulação pós-desenho, etc., sem deixar de fazer uma associação da componente estética a toda uma série de produções humanas, históricas e particulares.

Muitas vezes se discute ou se diz que não há que ter informações externas sobre uma obra de arte para a apreciar, desfrutar, interpretar, ler. Mas tal afirmação apenas se pode dissolver numa generalização tão grande que demonstra desde logo o afastamento da tremenda diversidade de produções, intensidades, formas e graus de leituras possíveis dessas mesmas obras de arte. De novo, o problema está na criação de um só filtro normativo e essencialista para nos aproximarmos de todos os textos. No caso das bandas desenhadas de Conefrey neste livro, há com efeito que procurar ler com mansidão e abertura a cada uma das páginas abertas. Folheá-lo não é lê-lo.

Ora Rommens faz interpretações bebendo das disciplinas da dança e da ciência biológica, todas elas válidas e interessantes, estimulando-nos a ler então nas formas de Conefrey modos de resposta a toda uma série de interpelações do mundo que habitamos. Ver então Meteorologias como uma máquina de desemaranhar o mundo é uma possibilidade clara, seguindo os elementos do “tempo, duração, ritmo” (quase prometendo um diálogo com Tarkovsky e o seu Esculpir o tempo). Não desejamos invalidar essa interpretação, mas a parte mais intensiva da leitura de Rommens prende-se à sua manutenção ao nível superficial das páginas. É ao próprio acto de leitura, ao afecto e sensações de acompanhar as especificidades materiais das imagens de Conefrey em cada “ciclo” que importa prestar atenção: a leitura como “exercício fisiológico”.

Cada uma das unidades foi desenhada num bloco Moleskine de vinhetas pré-determinadas. O autor parece ter trabalhado exclusivamente, no lavrar das imagens, com tinta-da-China. Pincel, caneta, lápis são os instrumentos lavradores. Em determinados momentos, o autor porém empregou algumas técnicas de manipulação digital (imagens em negativo, pequenas distorções, sobreposições, desfocagens, filtros) que alteram a natureza das imagens para além das meras “limpezas”, ajustamento de níveis, etc. que fazem parte da conta-corrente das práticas artísticas actuais. As técnicas de imposição das manchas segue as mais diversas posições do pulso, levando a linhas carregadas, grossas, negras e densas aqui, e ali a manchas mais difusas, esgarçadas, resquícios de passagens meio-secas. Existem momentos de maior “acalmia”, em que o espaço branco predomina nas pequenas formas formando-se, e outros em que padrões geométricos e regularizados se constroem e se cruzam.

“Membrana fóssil” apresenta uma composição de página mista, mostrando “vinhetas” pequenas em grupos de quatro, empilhadas, recordando um pequeno filme, para paulatinamente deixar as linhas se escaparam dos seus limites, obrigando a outras distribuições, regressando a uma ordem anterior, numa respiração latente das linhas pinceladas. “A matéria do vento” apresenta linhas brancas contra um fundo negro, invertendo a relação anterior, mas igualmente trabalhando sobretudo eixos verticais ao início, que se vão complicando, misturando, complexificando e acalmando. De acordo com o prefácio, “Pequenos mundos” baseia-se no portfólio de arte múltipla Kleine Welten que Kandinsky elaborou em 1922. Sentindo-se haver aqui uma maior focalização na ideia de variação e diferenciação a partir de um tema, seria possível entender “episódios” internos a este ciclo, que passam pelas formas desenhadas, a distribuição na composição (um dos momentos cria uma coordenação inusitada entre as quatro vinhetas, como se pode ver na imagem deste parágrafo), a concentração das imagens, a intensificação de padrões, a inversão do preto e branco, convidando então a uma leitura microcósmica e ainda mais autonomizada no interior do ciclo. Finalmente, “Tornado a casa”, em que a tradução em inglês dá a entender que o primeiro vocábulo deve ser entendido como o fenómeno metereológico, e não o verbo, criando um eco temático claro no interior de todo o projecto, há uma busca mais nítida pelo estilhaçamento. Sendo as imagens apresentadas quatro a quatro em cada dupla página, a qualidade das imagens é sempre diferente em cada virar de página, buscando naturezas bem mais contrastivas, até uma verdadeira explosão (sim, seguimos ainda, inevitavelmente?, o território da representação-figuração; a linguagem a isso obriga, ou não saberemos nós livrar-nos dela) e finalmente dissolução total.

Desta feita, poderíamos ler esta última peça como, a um só tempo, uma busca pelo frenesim total da experimentação desregrada e, ao mesmo tempo, um lançamento auto-aniquilador no branco da página? Será possível reterritorialiar este estimulante e livre experimento de Conefrey a partir de um posicionamento moral, de compreensão do gesto artístico, estético, manual, sob as categorias de uma ontologia humanista? Ou será antes esse paradoxal excesso e minimalismo antes um sinal da impossibilidade precisamente de compreender estes sistemas tão acima do nível humano?

Meteorologias é um gesto superior da parte do autor em querer manter-se num território cujo nome é ainda “banda desenhada”, mas afastando-se dos seus campos mais convencionais quase até ao momento em que o horizonte não permite vislumbrar esses mesmos campos. Para descobrir que esse território, todavia, não acaba ali, abrupto e derradeiro, mas oferece ainda terreno sólido para continuar a caminhar. É a responsabilidade do leitor, então, caminhar com a leitura.

Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta do seu volume.  

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