23 de dezembro de 2016

Si Lewen’s Parade, An Artist’s Odyssey (Abrams)

Si Lewen, que viria a falecer algum tempo depois da produção deste livro, foi um pintor norte-americano que é muitas vezes agregado a essa imensa família do “expressionismo abstracto” desse país, se bem que não conste da primeira linha de artistas que usualmente se citam. Não tendo o mesmo papel no palco internacional que outros nomes mais sonantes, a sua presença não é de forma alguma displicente nesse contexto, e algumas das suas obras ocupam um espaço interpelante, vincado, significativo, e até original, mesmo que esta palavra tenha hoje um valor diluído. Oscilando entre a figuração e a abstracção, herdando dos cubistas muitas vezes a presença dupla dessas forças num só plano de composição, os jogos de referencialidade com o mundo, e jamais abdicando do “sentido”, transmitido quer pela figura, quer pelo título (se bem que muitas telas sejam baptizadas com “Sem título”) quer pela coordenação de séries, Lewen é um autor que, descoberto de atacado, faz-nos ponderar até que ponto a História da Arte, tal como é estruturada e transmitida pelos seus canais mais usuais, não é ainda um projecto de uma incompletude estrondosa, quiçá mesmo impossível. Acresce a isto a produção de objectos ou obras que possam ser re-agregadas pela História da Banda Desenhada, e ainda se torna mais complicada a sua integração… (Mais) 

A razão deste livro é a reedição de The Parade, um livro de imagens, organizadas de acordo com uma sequência, que é passível de ser lido como uma proto-graphic novel (precisamente a forma como está a ser comercializada esta edição, lançada pela colecção Comicarts da Abrams). “Descoberta” por Spiegelman, ou por ele re-apresentada ao grande público num contexto mais receptivo a este tipo de textos, este volume é apresentado sob a forma de acordeão, estando no verso desse livro uma outra parte, intitulada “An Artist’s Odyssey”, que dá conta da vida e obra deste artista de origem polaca e judaica. Jesaja (isto é, “Simão”) Lewin nasceu em 1918 em Lublin, e faria parte desse imenso contingente humano que se viu obrigado a abandonar a sua terra natal pela sombra do nacional-socialismo, e nessa inscrição toca as raias de uma experiência colectiva que se vê reflectida em vários traços em muitos outros autores. Não poderá haver surpresas, portanto, a que haja coincidências de tratamentos temáticos, posições políticas, preocupações identitárias e até estratégias matéricas e estruturais irmanáveis com outros artistas da diáspora, e não será obra do mero acaso, naturalmente, que seja Art Spiegelman a estabelecer o ponto de contacto entre Lewen e o dito mundo da banda desenhada (num sentido de “art world”, de H. S. Becker).

Prancha a prancha, o livro inicia-se com uma cena diurna, solar, de crianças a ocuparem uma avenida, e onde toda a população se junta para celebrar a passagem dos militares. Todos abanam bandeiras e pavilhões e exultam à vista das baionetas e capacetes das cabeças erguidas e as botas bem engraxadas. Num livro sem texto, apenas uma imagem revela as palavras de ordem dos estandartes, algumas das quais semi-visíveis: “honra”, “verdade”, “justiça”, “liberdade”, “paz”. Não é necessário qualquer contexto específico, qualquer quadro económico ou social, são esses os princípios que importa defender, mesmo pela morte. Viva a morte!, como diziam os falangistas. Alguns dos jovens alistam-se no exército, por uma figura que tem tanto de maternal como de Morte. Aptos, lançam-se ao combate frenético nas linhas da frente, e onde de um lado as mães deles despediam-se, no outro são outras mães por eles feridas. Seguem-se cena e cenas de toda a mortandade e excesso e destruição, algumas das quais talvez ecoando outras composições consabidas (é impossível não compreender o fantasma de Guernica), mas onde a noção física, estrutural, de “parada” continua sempre a imperar: nas fiadas de pés de mortos, no fio onde estão penduradas cabeças decepadas, nas fileiras de mãos esquálidas erguidas mas ainda com força para abanar bandeirinhas. E, claro, as paradas propriamente ditas, o concurso de corpos dos fugitivos, dos capturados, dos concentrados, dos moribundos, dos desesperados, dos estropiados, dos ratos, dos seres já despojados da sua humanidade.

Lewen haverá testemunhado muitas destas “paradas” militaristas na Europa, e depois nos Estados Unidos, paradas de celebração antes dos conflitos, em que se assume a soberba de uma superioridade (tecnológica, bélica, política, moral, humana) perante o inimigo, e depois, vitoriosa e não menos soberba. Mas o final de um conflito apenas prepara para o início do próximo, como se a parada fosse uma ouroboros. O que justifica, desde logo, a edição em leporello. The Parade faz parte de toda uma série de textos que criam tessituras alegóricas em torno da suposta “universalidade” do conflito violento dos seres humanos. Na animação, por exemplo, poderíamos pensar em The Bead Game de Ishu Patel (19777) ou no Cavallette de Bruno Bozzetto (1990). Comparar com a animação não será assim tão estranho, não apenas pela forma como apresentámos a sinopse, que convida a uma ideia de fluir constante (e que um grupo de estudantes tentou formar, a nosso ver com alguma ineptidão), mas igualmente dado os efeitos cinéticos que Lewen procura instilar nas suas formas, com linhas mostrando efeitos de movimento, de repetição e padronização, ou até a gestão da composição, de uma narratividade inegável, ou ainda o jogo intenso de planos médios e aproximados, a parcimoniosa mas inteligente fuga das molduras do papel, e outras técnicas. O desenho, feito a grafite, carvão e tinta litográfica sobre papel com uma preparação de gesso, ganha uma materialidade muito própria, feita de texturas minuciosas e poeirentas, sombras acumuladas e zonas diáfanas, traços expressivos e sombrios aqui, e tule esgarçada ali. Reproduzidas no mesmo formato que a edição original, mas provavelmente numa resolução mais significativa, a leitura e manipulação do livro pode-se tornar algo complexa, mas convida a uma leitura infinita ou a uma exposição holística desta procissão.

A experiência de guerra de Lewen ressurgiria pela sua participação na 2ª Guerra Mundial como parte dos “Ritchie Boys”, um imenso ramo do exército norte-americano treinado para missões de inteligência, que incluiria tradução, interrogação e investigação no terreno europeu, mormente alemão ou de expressão alemã. As experiências agregadas quando dessa parte da sua vida alimentariam algumas das suas futuras perspectivas sobre os conflitos bélicos, não apenas em termos de imagem mas de mundividência e atitude. Toda e qualquer imagem deve ser lida, então, não apenas na sua parcelar contribuição narrativa, mas no seu papel simbólico. Esta edição conta ainda com algumas imagens que acabaram por não fazer parte do ciclo, como uma imagem de crianças à frente de uma montra vendendo espingardas de brinquedo, ou recebendo esses mesmos brinquedos das mãos de um Pai Natal, o que ajudará a um só tempo a compreender o programa alegórico de Lewen mas igualmente à sua capacidade de gerir a subtileza e melodrama dessa mesma mensagem. Há, todavia, uma dimensão que não está presente de todo em The Parade. O humor. Se relermos Masereel, verificaremos que mesmo no interior das suas obras onde o desespero humano é protagonista, há sempre um espaço para a esperança positiva, o lado luminoso do pequeno gesto humano, a pequena redenção, mesmo que tardia. The Parade parece-nos um gesto mais desesperado, onde apenas se pode esperar um ciclo incessante de novas paradas com consequências absurdas. Aliás, a própria escala humana é algo afastada uma vez que não se erige qualquer personagem ao estatuto de protagonista, criando assim as possíveis redes cognitivas e emocionais com o leitor. Toda e qualquer figura humana que surge está reduzida à sua função momentânea e simbólica na economia dos acontecimentos representados e nas relações entre estes, forçosamente lineares e finalistas.

Originalmente publicado em 1957, e num circuito limitado, The Parade vem juntar-se ao número de obras de “romances gráficos mudos” que muito se praticavam nas décadas anteriores e que foram estudadas de forma mais sistemática por David Beröna. Faz parte mesmo do que uma antologia desses trabalhos, por G. A. Walker, chamou de “testemunhas gráficas”. Estranhamente, ou nem tanto, Spiegelman não menciona esse estudo e muitos dos exemplos que agrega, preferindo manter apenas as ligações directas a Frans Masereel (de que Lewen havia recebido uma cópia de Mein Stundenbuch, de 1919, em 1931, pelas mãos do pai quando fez 13 anos, e actuaria como modelo máximo) e a Lynd Ward (que é erguido como expoente deste capítulo ou tipologia de livros nos Estados Unidos, e para a edição de quem Spiegelman havia escrito um prefácio). Desta forma, a nosso ver, a contextualização de The Parade é feita de modo mais circunscrito, para sublinhar mais uma vez a “excepção”, o que confirma por sua vez uma perspectiva da banda desenhada, das artes plásticas, enfim, de toda a prestação das narrativas gráficas conforme, em vez de procurar as porosidades, as tensões, o espectro dessa mesma produção.

Como dissemos, o “outro lado” do livro apresenta aquilo a que se costuma chamar de biografia intelectual, expondo não somente os dados e datas de Lewen, mas mostrando as suas obras pictorais, e as transformações internas que foi demonstrando. Acompanhado por um ensaio de Spiegelman, alguns pedaços de diálogos entre os dois (com Hillary Chute), excertos de uma autobiografia inédita de Lewen, e alguns outros materiais textuais, este volume é com efeito uma apresentação soberba. Um dos aspectos curiosos nessa navegação é que encontraremos preocupações que vão sendo “recicladas”, como uma tela de 1947, perfeitamente figurativa, de uma família fugindo, que encontraria poiso naquela imagem que é usada como capa do projecto em discussão. Se usamos a palavra “reciclar” é propositada e exacta, uma vez que Lewen transforma muito do seu material pictórico em matéria reaproveitável em trabalhos posteriores, usando muito o princípio da colagem, reassemblagem, citação interna, tema e variação na sua obra. A sua obra “Millipede”, composta por centenas de telas com padrões abstractos que deverá compor uma imensa linha sinuosa de imagens, a série Trail, ca. 1998, que mostra um conjunto de formas semi-abstractas isoladas em áreas negras (e que, por sua vez, faz recordar essa grande animação sobre o Holocausto, Les jeux des anges, de W. Borowczyk), e outros trabalhos, mostrado no volume com seriedade e pompa, ajudarão a apreciar de forma mais completa as especificidades formais, técnicas e temáticas de The Parade. Esperemos que este gesto seja suficientemente alavancador para poder dar azo a uma reedição acessível do aventado, mas secundarizado, segundo projecto de “livro de imagens narrativas” de Lewen, A Journey, de 1980, que nos parece mais onírico e pessoal, mas não menos significativo para este contínuo projecto de expansão da área.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume. As imagens foram colhidas da internet. 

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