27 de março de 2017

Mensur. Rafael Coutinho (Companhia das Letras)

Depois de Cachalote, em colaboração com o escritor Daniel Galera, e O beijo adolescente, a solo, Rafael Coutinho traz um novo livro, num desses fôlegos que usualmente na circulação social da banda desenhada é um garante de uma conquista particular junto à atenção mediática mais normalizada. Para os seus leitores contínuos, não haverá necessidade de recorrer a esse tipo de musculatura e presença para demonstrar as suas capacidades expressivas, mas sempre se cria uma impressão. (Mais) 

Mensur é uma história que, em contraste com os demais gestos criativos do autor, procura contornos relativamente simples. Uma história em torno de uma personagem conhecida pelo nome de Gringo, ao ponto dele o empregar em plena substituição de qualquer nome que tenha. Gringo parece ser um drifter, viajando de terra em terra e procurando empregos meneais que lhe permitem um mínimo de sobrevivência. No entanto, compreendemos que terá uma educação superior à média, uma inteligência culta mas não propriamente brilhante, tendo escolhido um caminho solitário. Terá abandonado uma vida “normal” algures na sua vida. A única herança, por um instante pelo menos, que carrega desse tempo, é a prática de mensur, uma forma tradicional de esgrima, com origem nas repúblicas e fraternidades de estudantes alemães. Com o seu rapier, de quando em vez encontra-se com outros praticantes nesse seu deambular. Por vezes ponto de encontro, outras modo de afastamento, o mensur surge então como traço identitário de Gringo, âncora da sua personalidade abandonada às circunstâncias cambiantes desta sua nova vida e ponto de significados no momento em que precisa de confrontar certos fantasmas.

O livro encontra-se dividido em secções tituladas, com os nomes das cidades por onde Gringo passa (ou regressa, se abastece, reforça, etc.), mas a progressão não deixa de ser linear. Se existem formas de acedermos ao passado, não é por cenas de flashback (com uma única excepção chocante mas não melodramática) que ajudam o leitor a ir preenchendo o seu conhecimento em relação ao protagonista ou os que o rodeiam, mas sim através de inferências do pouco que é dito e sobretudo das atitudes e reacções das personagens entre si. Tal qual o fazemos na vida real quando tentamos perceber mais do que nos é dito explicitamente ou, como diz a gíria popular, “tirar nabos da púcara”. E há bastantes nabos a procurar ao longo de Mensur. E havendo um crime (hediondo, por sinal) no centro do livro, o autor não procura transformá-lo no mistério a resolver, nem sequer no móbil das acções, e nem sequer estabelece a sua origem, deixando ao leitor a responsabilidade de criar a sua resolução.

Dito isto, é natural que Coutinho procure alguns desvios das formas clássicas de organização da narrativa, o que é feito a todos os momentos através de elipses maiores que as “naturais”, através da composição de página que, aqui e ali, busca formas e protocolos menos comuns e, claro está, no clímax do livro. Dito isto, compreender-se-á que Mensur, na verdade, apresenta um esquema narrativo algo clássico, quer em termos narratológicos quer até nos papéis de distribuição da agência dos eventos. Aliás, neste ângulo, Mensur é até conservador, se assim se pode dizer, no papel da masculinidade do herói. Não apenas ele é solitário e alimentado por um sentido de si muito próprio, como a sua visão de justiça é idiossincrática, e se relacionará com uma figura feminina que preencherá o papel de “damsel in distress”.

Mas, com efeito, o que é este tipo de combate de esgrima académico senão toda uma prática e discurso em torno de uma masculinidade tradicional, que engloba uma fraternização entre homens, e apenas homens (cisgender, seria necessário acrescentar?), uma busca por uma certa ideia de igualdade e meritocracia, a ascensão do acto violento e sua apropriação como ponto de honra, etc.? A diferença entre estes actos e as praxes académicas um pouco por todo o mundo seria constituída apenas por mínimos graus de diferenças culturais, mas jamais de substância em termos dos seus frutos desejados, sempre reforçando portanto essa perspectiva tradicionalista. Imaginamos que seja uma cultura que tenha um extenso espectro de vivências e posicionamentos políticos (se bem que, à partida, nos pareça associável a uma ideologia conservadora a vários níveis, há a defesa acérrima do individualismo e há certamente aberturas a práticas multiculturais), mas concentrar-nos-emos no seu emprego nesta narrativa.

Desconhecemos por completo se esta transplantação para um contexto brasileiro contemporâneo corresponde a alguma realidade, uma sub-cultura que imaginamos marginal e oculta, mas que procura intersecções com outras sub-culturas locais (como se demonstra em cada uma das cidades visitadas pelo protagonista). Ou se se trata tão-somente de uma ficção de Coutinho. Parece que a prática ainda existe pela Alemanha, mas “domesticada” (ou então, lá está, na sua forma original, conducente às cicatrizes de honra, mas de forma secreta), e para sublinhar a pertença a repúblicas masculinas. Dito isto, todavia, não deixa de haver aqui um desejo de reintroduzir precisamente essa assunção do discurso do mensur como política de identidade num momento em que, talvez, essa mesma categoria (“homem”) é colocada como centro nevrálgico de toda uma série de desigualdades sociais, culturais e económicas na esmagadora maioria das sociedades em desenvolvimento.

Diríamos que a força de Mensur estará menos numa pesquisa que ponha em causa a natureza narrativa da (percepção usual da) banda desenhada, ou até numa preocupação de fazer avançar questões políticas de representação do que, em torno de uma estrutura relativamente classicizante, criar formas de atenção particulares. O que traz ângulos inovadores e arestas expressivas à forma de narrar de Coutinho está na maneira como gere uma determinada cena “interrompendo-a” com pequenas percepções a coisas que vão ocorrendo lateralmente, ou atomizar a atenção sobre o evento principal em formas de composição de páginas que desregulam a sua apresentação num só eixo. Podemos vogar entre ângulos picados e contrapicados radicais, criar redes de divisão entre cenas simultâneas, obrigar o foco a prender-se a uma perspectiva visual subjectiva que impede uma amplitude maior, e há mesmo a cena final de um combate que abdica totalmente da “clareza” dos eixos espácio-temporais.

Ao mesmo tempo, estas estratégias permitem a Rafael Coutinho dar asas à sua linha livre. Um desenho nervoso, que parte de uma compreensão íntima das proporções e expressões do corpo e rosto humanos, mas que depois se abandona em alguns paroxismos, ou aproveitamentos icónicos prováveis de imagens alheias, e muitos efeitos em que a linha parece ganhar uma proeminência singular, quase desligada daquilo que deveria representar. É assim que várias cenas ganham intensidades visuais e de composição independentes da matéria narrativa, instilando alguns dos tais desvios a que nos referíamos. São essas as cicatrizes, digamos assim, criadas propositadamente, em nome de uma identidade expressa de modo tradicional, sobre o rosto que se apresenta. O leitor terá de as confrontar.

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. 

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