23 de março de 2017

Science Comics, vários títulos. AAVV (First Second)

A ideia de usar a banda desenhada como um meio de transmissão de informação, como meio de educação, não é de todo nova. Se englobarmos as imagens Quentin nessa equação, ancoramo-nos mesmo nas origens populares e na infantilização desta disciplina no século XIX. Mas poderíamos recuar ainda mais, se se pensasse em questões dos livros ilustrados medievais, das enciclopédias aos Musterbuchen, e a inúmeras práticas. Usualmente, esta utilização é vista com alguma desconfiança quando se parte de um ponto de vista estritamente estético, uma vez que os instrumentos empregues por estes exemplos não serão aqueles que mais preocupados estarão com a pesquisa da expressão, com a individualidade autoral, mas antes subsumem-se a noções tais como as da legibilidade, da inteligibilidade, da clareza de argumentação, etc. E muitas vezes acompanham-se de um qualquer enquadramento moralista que é bem distinto da visão mais progressiva. Não se pode, porém, negar que esse “uso”, não sendo artístico ou literário ou politicamente relevante, ainda assim conseguirá conquistar de quando em vez um qualquer grau de competência que a faz escapar de uma oferta desapaixonada. (Mais)

No quadro da oferta de livros em banda desenhada sobre temas científicos, temos um autor maior em Larry Gonick, cuja obra actua como uma verdadeira divulgação pluridisciplinar através de um humor corrosivo, por vezes, mas intelectual e culturalmente sólido. Alguns dos volumes de Gonick estão publicados em português pela Gradiva, mas a sua obra é bem vasta. Todavia, não está pensada para os leitores em idade escolar, mas sim uma popularização disciplinar. Os volumes que têm saído pela First Second, sob o título geral de “Science Comics” seguem muito provavelmente alguns dos programas em vigor nos Estados Unidos, ou tocam as raias de temas que são exploráveis nas escolas, em trabalhos de grupo, investigações, projectos, etc. Dizemos isto pois eles quase sempre assumem estruturas gerais que procuram responder às necessidades desses mesmas temas, apresentado ora linhas cronológicas de desenvolvimento, tipologias do objecto em questão, contextualizações hodiernas para uma maior acção de resposta, ou conselhos para intervenção social.

No caso de Gonick, que continuará a servir-nos de modelo, não há uma grande preocupação em criar uma moldura narrativa linear ou simplificada para conduzir a apresentação e esgrimar dos factos. Poderíamos aqui recordar o volume criado entre João Ramalho Santos e André Caetano, em torno das células estaminais, e tentar compreender como a falta desse tipo de enquadramento poderá criar uma barreira à fluidez do discurso. Parte-se do pressuposto do interesse do leitor, e há um diálogo entre adultos. Estes volumes necessariamente criam pequenas ficções no seu interior, que depois servem de ancoramento às informações trocadas, quase sempre no interior daquela dinâmica conhecida de ter uma personagem inquisidora e outra de autoridade, que a vai “educando”. Há casos em que essa construção é muito competente e até constrói uma “história” divertida e interessante em si mesma. Mas há também casos em que isso não é conseguido da melhor forma.


Por exemplo, os dois volumes de Falynn Koch, Bats e Plagues, preocupam-se sobremaneira com a construção de personagens simpáticos, abertos aos mecanismos de aproximação do leitor. No primeiro caso, temos uma dupla desencontrada mas complementar, entre uma jovem rapariga que salva um pequeno morcego de um acidente, levando-o para uma veterinária especializada, e o próprio morcego, que vai criando relações com todos os outros morcegos, que não da sua espécie, no pequeno hospital. Desta forma, temos duas fontes de informação em torno do mesmo tema: a veterinária, que vai explicando à jovem todo o seu trabalho e missão, assim como informações sobre os próprios morcegos, e esses mesmos morcegos que já estão na veterinária, explicando ao jovem acabado de chegar os seus estilos de vida e origens, contribuindo assim para uma compreensão bem alargada dos morcegos no mundo, a sua biologia e morfologia, mas também papel global na ecologia, sublinhando sobretudo o seu contributo particular para a vida natural e as possíveis relações com os seres humanos. No caso de Plagues, o que se pretende é explicar a maneira como se tenta transformar alguns vírus e bactérias em armas a favor dos humanos, combatendo outras doenças. Assim, no interior de um “corpo virtual”, de uma cientista em particular, vamos acompanhando o discurso desta, corroborado por um pequeno computador de bordo e um linfócito T, enquanto explica ao vírus da febre-amarela e à bactéria da peste bubónica como elas podem ser transformadas em aliados dos humanos.

Em ambos os casos, temos uma pesquisa não apenas completa e interessante de cada tema, como uma construção inteligente das personagens, procurando traços de personalidade fortes para todos – até o tratamento do vírus e da bactéria é muito apropriado a cada característica faceta dos agentes patogénicos, tal como dos restantes. É isso o que permite depois uma boa gestão das “informações duras”.

Já no caso do livro de Alison Wilgus e Molly Brooks, Flying Machines, isso não é conseguido, a nosso ver, da melhor forma. É verdade que o sub-título é muito directo sobre o seu propósito: “Como os irmãos Wright voaram”. Com efeito, este não é um volume tanto dedicado às máquinas voadoras em geral, à história da aviação, ou sequer aos vários contributos individuais e parcelares de toda uma galeria de personagens, mas antes um concentrado elogio aos irmãos americanos responsáveis pela convergência sistemática de vários elementos que abriria o caminho certo à indústria aeronáutica. Sendo esse o tema, não nos surpreenderá o foco narrativo do livro. A sua condução é feita por Katharine Wright, a irmã mais novas dos famosos inventores, já adulta, mas actuando como uma espécie de guia externa à diegese, e que vai não somente introduzindo cada novo episódio, como tece inúmeros comentários e apartes em relação ao que é dito e feito pelas outras personagens. Todavia, esse mecanismo torna-se por vezes algo distractivo, julgador e empobrece um pouco a dinâmica dramática que poderia ocorrer em relação aos eventos em si. Algo que é bem mais conseguido nos dois livros de Koch, uma vez que a atenção está ao nível das acções no seu momento.

Como se disse, existem momentos de “informação dura”, que em ambos os casos surge sob a forma de diagramas ou quadros informativos ou imagens mais ou menos infográficas, que estruturam dados visuais e/ou textuais em distribuições não-sequenciais. Uma vez que Koch é uma artista com maior desenvoltura, mesmo que se inscrevendo numa família muito alargada de novos artistas pós-Tumblr (cuja característica é a de narizes proeminentes, avermelhados e muito expressivos), ao passo que Brooks e Wilgus (não tendo a certeza se é trabalho de colaboração, complementarização ou distribuição, referir-nos-emos a ambas) são mais esquemáticas, também os livros sobre morcegos e pragas funcionam de uma maneira mais dinâmica, integrada e elegante. Aliás, a figuração de Koch tem um equilíbrio muito feliz entre o abonecado e cartoonesco e o correcto. Apesar dos morcegos acabarem todos por ter um ar “cute” e os agentes patogénicos serem antropomorfizados descaradamente, a verdade é que a sua colação com “espécimes reais” demonstrarão correcção.

Sentimos muito menos uma “interrupção” na fluidez narrativa nos livros de Koch do que no outro caso, em que há mesmo opções distintas em termos de composição de página, figuração e cor. O que é curioso, porque, pelo menos na narrativa de Plagues, há muito mais desvios e excursos pela história da humanidade, e até por considerações do foro social, mas que ajudam a reforçar o propósito do livro, o que distingue a autora de um hipotético “mero tratamento informacional”.  

O objectivo de cada volume não é esgotar os temas respectivos, de forma alguma, mas serem completos de modo suficiente, pelo menos, para introduzir as várias linhas de pesquisa possível. Mais uma vez parece-nos que os livros sobre os morcegos e as pragas são bastante competentes nesse aspecto, mesmo que o tratamento das informações em si possa ser mais acabado nesta dimensão do que noutra. O livro sobre os Wright, uma vez que se preocupa somente com o gesto destes para com a história geral da aviação, é necessariamente integral nesse recontar.

Naturalmente que o humor está sempre presente, e até uma certa leveza, como é de esperar. Mas mais uma vez criar-se-ia aqui uma outra valorização de Koch por oposição à da dupla sobre os primeiros aviões, uma vez que não se procura qualquer tipo de condescendência em relação aos leitores, nem pedidos de favor. Este confronto, por assim dizer, demonstrará que não se podem tratar estes livros como idênticos no seu tratamento, e há que perceber as diferenças na qualidade das suas abordagens. Mesmo para compreender, até, as possibilidades da banda desenhada em ser, com efeito, um canal de comunicação efectivo, eficiente e pensado.

Nota final: agradecimentos à editora, pelo envio de cópias digitais dos livros (imagens colhidas da internet). 

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