15 de maio de 2017

Martha & Alan. Emmanuel Guibert (L’Association).

Esta autobiografia tecida por um outro é um projecto notável. Uma vez que havíamos dedicado algum tempo ao debate do que significa em termos culturais este gesto de Guibert, o de criar vários livros “d'aprés les souvenirs d'Alan Ingram Cope”, em que a voz está na primeira pessoa mas toda a sua estruturação e mediação é feita por um “terceiro” (uma das palavras associadas à ideia de “testemunha” em termos etimológicos), remetemos às notas sobre o último volume de La guerre d'Alan e L'enfance d'Alan para compreender o pasto de onde emerge este novo livro. Todavia, Martha & Alan é uma criatura bem distinta, por questões formais, textuais e estilísticas. (Mais) 
O próprio autor descreveu este volume como um “parêntesis” em torno do projecto maior, o que nos ajudará a reforçar a aliança entre La guerre e L'enfance, e o que poderá vir depois, articulando Martha & Alan como um pequeno desvio na maneira de reconstruir essa vida de Cope pela banda desenhada de Guibert. É possível que, de um ponto de vista individual, do prazer da leitura apenas ancorado neste volume, as conquistas sejam mais tranquilas e menos significativas do que os trabalhos anteriores. Mas ao mesmo tempo, ou melhor, em vez disso, há aqui esse foco perfeita e elegantemente construído. Uma nota de rodapé, se quiserem, nessa vida. O livro centra-se na relação entre Alan, desde a sua infância à idade madura, com uma vizinha na sua terra natal, Martha, com a qual estabelecera uma relação muito íntima na primeira idade e com a qual, depois de uma vida de experiências imensas (a guerra, o casamento e os filhos, a mudança para França), a reata. Portanto, este livro é menos uma peça “mais” na cronologia da vida de Cope do que um “dossier específico”.


Toda a narrativa é contada a partir de uma voz concentrada, como se estivesse de facto a rememorar e a contar em retrospectiva toda esta linha específica. Sabendo que Guibert gravara horas de Cope a contar estas histórias, terá ele construído como que um arquivo de histórias, narrativas, ideias e imagens, as quais disporá agora à medida da sua própria capacidade de decisão e trabalho. Podemos imaginar haver uma só cassete com a legenda que daria nome ao livro.

Guibert organiza o livro de maneira que devolve esta “voz”, apresentada como uma legenda ligeiramente deslocada das imagens, as quais as ilustram, impondo uma certa distância mas ao mesmo tempo um tom explicativo, que Fresnault-Deruelle teorizara num seu livro. A estrutura é bem distinta daquela a que Guibert nos habituara nos títulos anteriores, uma vez que temos apenas splash pages ou spreads (ou sempre spreads, pois mesmo quando existem duas imagens em cada página, três casos, elas articulam-se entre si num gesto coordenado; há apenas um exemplo de uma dupla página apresentando uma acção sequenciada, e em seis cenas espaçadas). Existem muitas cenas panorâmicas, mostrando largos cenários, sejam eles urbanos – a pequena cidade de Altadena em que os pequenos Alan e Martha viveram na infância – ou então as rasgadas paisagens à beira-mar experienciadas por cada um deles na sua velhice. Outras cenas mostram apenas um momento simbólico, representativo dos episódios contados (as missões do coro infantil da igreja local, um passeio, algumas das brincadeiras, etc.), sendo apenas muito poucos aqueles que se apresentam numa qualquer dinâmica mais tipificada da banda desenhada (transições de uma acção, o acompanhamento da banda “sonora” nos diálogos apresentados em balões de fala, etc.).


O volume abre com uma fotografia, que depois é reutilizada sob um dos desenhos. As imagens são criadas, aparentemente, com o uso de fundos fotográficos retocados pelos desenhos e cores de Guibert. Se outros autores haviam já feito este tipo de abordagem igualmente com intuitos de instaurar uma pesquisa da realidade – pensamos sobretudo em Jean Teulé, com Gens de France -, Guibert é um autor exímio nos seus efeitos de elegância, de coloração, de integração das figuras desenhadas nesses fundos realistas e texturados, quase fazendo pensar num desenvolvimento natural, ainda que afastado, da clássica “linha clara” da tradição em que se inscreve.

A integração dessa matéria de memória de Cope traduz-se ainda com a inclusão de outros objectos documentais, a saber, um desenho feito pelo próprio Cope recordando-se de uma das árvores a que subia com Martha, na Califórnia, e uma carta escrita por Martha já na idade adulta. Coordenados com todas aquelas instâncias em que parecem ser usadas “fotografias” (já traduzidas pela mão de Guibert), esses documentos criam uma ideia, a um só tempo, de referencialidade, de prova de verdade mas igualmente de estruturação pausada da memória (de certa forma, recordando os ritmos debatidos a propósito de Pascal Matthey).

Gesto tranquilo mas que expande a “vida em papel” de Alan Cope, episódios da vida, aqui amena (os jogos e brincadeiras, a participação no coro), ali mais traumática (a morte da mãe, a pobreza), mas sempre recontada com a serenidade da velhice sábia e a distância, que deseja antes guardar uma boa fortuna com os demais seres humanos, Martha & Alan é um belíssimo gesto sobre a beleza que toda e qualquer vida humana contém.
Nota final: a cópia lida pertence à biblioteca do CDI do Liceu Francês de Lisboa. Imagens retiradas do Le Monde, onde algumas das pranchas foram publicadas. 

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