9 de junho de 2017

O rei macaco. Silverio Pisu e Milo Manara (Arte de Autor)

Adaptação. Versão. Devaneio. Fantasia. Comentário. Alegoria. Todas e quaisquer destas palavras serviria para presidir a uma descrição deste volume, ou talvez melhor uma mistura entre elas, procurando as linhas de força conceptuais de cada uma, operando sobre alguns dos elementos que a compõe. Uma obra primitiva do famoso Manara a caminho da sua primeira maturidade, numa colaboração com Silverio Pisu, autor de experiências variadas e que se exprimem neste livro. O título original é Lo scimmiotto, literalmente “macaquinho”, que também era o título pelo qual o clássico chinês, atribuído a Wu Cheng-en, Viagem ao Ocidente, havia sido traduzido à época em Itália. Na verdade, já nos referimos a esta obra há uns anos, quando da leitura de uma versão feita por Terada Katsyua, e a ela remetemos para devolução de um breve contexto da obra. Até certo ponto, poder-se-ia dizer que este volume é uma adaptação desse escrito literário, já que as personagens, os episódios, as expressões e apodos, os contornos fantásticos, se repetem a par e passo conforme a primeira parte da obra chinesa. Mas a adaptação de Pisu e Manara não apenas se mantém na primeira parte, até ao castigo de Buda que aprisiona o Rei Macaco sobre uma nova rocha (recordemos que ele nasceu de uma pedra, havendo portanto um pequeno ciclo de regresso à origem neste episódio), como transforma toda a novela dessa figura numa plataforma para a criação de uma alegoria política. (Mais) 

Aparentemente, o livro conta então a origem do Rei Macaco, a figura mitológica Sun Wukong, os seus primeiros embates com os seres celestiais da corte do Imperador de Jade, as suas conquistas de fama e fortuna, o seu estranho papel enquanto líder de uma tribo “inocente”, a sua ascensão nos escalões do poder mas igualmente a sua natureza de poucos compromissos e, finalmente, o seu derradeiro castigo. Todavia, se se repetem muitos dos elementos previstos no clássico, inclusive a sua inscrição visual numa China mítica e histórica, a um só tempo, Pisu e Manara aproveitam para instilar toda uma série de elementos que o tornam uma espécie de alegoria e celebração das ideologias progressistas de uma esquerda generalizada, maoísta ou trotskista, que serve de heróica resistência a uma hegemonia avassaladora e imparável da cultura hegemónica norte-americana.



Visualmente, os autores não perdem um passo para introduzir de forma quase sistémica elementos que remeterão para essa economia de representações: a mercantilização da cultura, o consumo desenfreado, a alienação das várias gerações, a falta de uma ideia de comunidade internacional, são os rolos compressores que estão no lugar do grande poder, sobretudo expresso pela classe inútil, empoeirada e destruidora da burocracia do império celeste, que se tornam os verdadeiros obstáculos do rei macaco. Com efeito, este confronta-se com toda uma série de personagens, mas é a apatia e inércia desse poder instituído que o acaba por minar de forma mais célere. Não deixaria de ser possível reler toda esta narrativa à luz dos vários governos nacionais ou instituições supra-nacionais hodiernas. Há mesmo uma personagem secundária que, a dado momento, se revela como um dragão de três cabeças, cada uma delas mostrando ser um militar, um clérigo e um capitalista de cartola. Se essa imagem poderá parecer um “cliché”, um símbolo que poderia ter tido lugar desde meados do século XIX até àquela data, passando pelo Assiette au Beurre, ela não é de todo deslocada deste contexto, que opera entre ideias contemporâneas e referências clássicas, imagens novas e um fundo comum, etc.

Quase todas as personagens secundárias não passam disso e são, muitas vezes, descartáveis mal os seus papéis se esgotam. Todavia, isso é adequado à natureza literária original, que não se conduzia por regras que adviriam com o mais tardio realismo social e psicológico do romance europeu, como com a própria natureza, algo panfletária e combativa, destas mesmas histórias. O rei macaco surge como uma figura contraditória, já que se por vezes surge como um campeão das sensações e dos prazeres simples, por outras opera como a voz dos oprimidos e um paladino de noas justiças sociais de redistribuição e da autodeterminação dos povos (na época, uma questão “quente”). Com Manara ao desenho, é mais do expectável de que as figuras femininas, sejam de que etnia forem, partilhem certas características corpóreas que as transforma em objectos de prazer e desejo, não transformando este livro propriamente num combate particularmente preocupado com a identidade feminina na sua própria independência, mas isso é também sinal de uma certa esquerda (ainda hoje nem sempre ultrapassado) de se bater pela liberdade enquanto cega a certos sectores onde ela poderia chegar (historicamente isso significou uma cegueira à cor de pele, ao sexo, à sexualidade, etc.).

O livro tem uma estrutura claramente episódica, de 8 em 8 pranchas, notando-se como as páginas iniciais remetem a uma breve sinopse e um relançamento das acções anteriores, espelhando assim a sua publicação capitular nas revistas alterlinus e, depois de mudar de nome, a alteralter. Este contexto é importante, não apenas pelo papel que terá tido na própria carreira de Manara como em termos mais generalizados. Em relação a Manara terá a ver com o facto deste estar a começar a criar livros de algum impacto político e visual. Depois de uma passagem por toda uma série de títulos comerciais, dos ditos fumetti neri, Manara trabalhou em colaborações com argumentistas vários, das quais esta é um dos frutos. Apenas após estas experiências, em 1978, com H.P. e Giuseppe Bergman, verdadeiro modelo de banda desenhada metatextual, arrancaria com as suas grandes obras a solo. É verdade que a sua grande fama seria angariada sobretudo pelas obras eróticas e pornográficas (uma dimensão que está sempre presente nos seus títulos, inclusive o presente, um tique por vezes gratuito e irritante e que, no fundo, acabou por lhe tomar outras possibilidades experimentadas), como O Clic, que não serão o seu melhor trabalho nem na lavra literária nem visual, mas quanto a nós parece-nos que os seus trabalhos mais acabados foram aqueles que sempre mantiveram laços com argumentistas de renomes e com os quais criou alguns marcos na banda desenhada italiana contemporânea (O Burro de Ouro de Apuleio, O Verão índio e O homem de papel continuam a ser livros merecedores da nossa revisitação). Todavia, é de facto nesta fase do final dos anos 1970 que Manara toma mais riscos, por exemplo, na composição de páginas, e estratégias “cheias”.

Com efeito, muitas das páginas mais interessantes desta pequena saga pautam-se pelos momentos em que o protagonista, dada a obrigatoriedade das suas deslocações pelos vários espaços, correspondendo igualmente a várias etapas e encontros com uma verdadeira galeria fantástica de personagens míticas, se depara com planos de conjunto e de paisagem. Sobretudo quando a linha de horizonte permite panoramas imensos, em que se revelam edifícios, construções ou paisagens naturais ou semi-mágicas populadas, o artista preenche o espaço com um rendilhado de pormenores exímio, e que obriga a micro-leituras recompensadoras (aliás, é nessa detecção que descobriremos o “sabor” da sua época, desde referências remetendo à cultura hippie e consumidora de erva dos anos 1960-70 a Claire Bretécher e outras dimensões da cultura popular e política de então, como vimos). E há também composições “decorativas”, como quando o rei macaco adquire a sua arma de eleição, o bastão mágico, num piscar de olho a Druillet ou mesmo a ilustrações mais clássicas. Isto não significa que haja momentos de menor gestão da estruturação, com vinhetas "fora do sítio" de uma leitura mais natural, ou disposição de balões que não é equilibrada em relação à ordem, e cujas soluções de caudas serpeantes não é a melhor...

Quanto ao contexto mais geral da banda desenhada, temos de criar alianças extremamente fortes e produtivas entre Itália e França, sobretudo, mas não descurar todo o contexto internacional. Estamos a falar, afinal, da década após as experiências do pós-1968, com a emergência dos underground comix e de títulos tais como a Métal Hurlant. O projecto da linus, discutivelmente mais dedicado a uma ideia (então) dos “clássicos”, abre uma porta com o seu novo título para prestações mais contemporâneas, trabalhando não apenas com traduções mas trabalhos locais originais (afinal, é aí que Pazienza publicou, recordando algumas das palavras que deixámos sobre essa publicação a propósito de um seu título). Mesmo que a narrativa do “crescimento” da banda desenhada seja algo perigoso enquanto discurso, se seguirmos as lições de Christopher Pizzino em Arresting Development (e de que daremos notícias em breve), não se pode negar que havia surgido toda uma geração de autores europeus ou na Europa interessados em pesquisar uma “maturidade” do meio que não se expressava pelo sexo e violência gratuitos, ou não integrados num programa maior de narração e representação políticas, mas por uma sofisticação mais elaborada em termos dos seus instrumentos de texto e imagem. Falamos de autores tais como Jean Vautrin e Jean Teulé, Alex Barbier, Chantal Montellier e os Bazooka, Muñoz e Sampayo, entre outros possíveis.

O rei macaco é assim um objecto cheio de contradições internas. Por um lado, é um dos primeiros grandes trabalhos de Manara enquanto artista visual com uma atenção particular para o pormenor, os planos de conjunto e a composição, por outro uma obra ancorada na época em que se pensava a banda desenhada como possível veículo de uma discussão e popularização política através da fantasia de modos mais explícitos, mas por outro ainda um objecto de grandes fragilidades nessa mesma missão.

A edição presente, materialmente irrepreensível e com uma tradução sólida do francês (apenas escapou um “non!” à revisão), inclui ainda toda uma série de imagens criadas pelo artista em torno desta personagem, em vários momentos da sua carreira. A edição é também feliz por ter escolhido uma belíssima capa mais consentânea com o seu interior do que muitas das versões estrangeiras, inclusive italianas, que optam antes por uns desenhos que assinalam um erotismo pacóvio ou uma relação, fora de carácter, entre o protagonista no seu mais bestial e o sexo. A opção portuguesa não seguiu, portanto, uma mera estratégia facilitista, mas sim respeitadora do livro, o qual, ainda que fruto da sua época, não deixa de ter dimensões ainda hoje urgentes. Fica apenas o senão de secundarizarem o nome do argumentista, e não de o terem colocado a par do do artista, já que o esforço criativo aqui deve ser repartido, e não compartimentado em hierarquias.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro. 

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